quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Knockout


Gosto de levar murros no estômago quando o assunto é arte. “The Wrestler” deixou-me de rastos, com uma valente hemorragia interna. Estamos ali por causa do Mickey Rourke, que naquele filme dá, de forma soberba, o couro e o cabelo (um longo e hipnótico louro platinado). Darren Aronofsky parece que goza connosco. Queremos logo ver a cara do Rourke e ele não deixa: nos primeiros planos, só o vemos de costas ou na penumbra. Quando finalmente encaramos “The Ram”, cada plano é penoso: vemos-lhe a cara intumescida, as mãos papudas de gigante, os olhos mortiços, o tronco colossal e tudo aquilo incomoda e fascina. Não se escapa à analogia do lutador com Jesus supliciado (põem-nos isso à frente dos olhos) e encolhemo-nos na cadeira perante o sofrimento deste Cristo “melgibsoniano”, não pregado, mas literalmente agrafado às mãos de um wrestler judeu. Adoro o grão deste filme, a sua verdade e violência, o facto de sentirmos que aquele actor “está mesmo lá”, como diz a Go-Go-dancer. Aliás, o wrestler e a dançarina de clube de strip jogam bem. Cada um veste (ou despe) um fato. A exibição e o artifício fazem parte do métier, mas se para ela a vida está lá fora, para ele o ringue é a vida que vale a pena. A cena final é magistral. Fiquei KO.


PS: Faltava este no arquivo. Um grande filme de 2009. Espero ansiosamente pelo novo do Aronofsky, "Black Swan".

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Buffalo Soldiers


"Miracle at St.Anna", um filme engagé à moda de Spike Lee, conta a história de quatro soldados afro-americanos ("fighting on arrival, fighting for survival") isolados numa aldeia da Toscana à mercê dos nazis, em plena Segunda Guerra Mundial. É um filme de história cheia e melodramática; é uma grande narrativa que atravessa o tempo e que vamos construindo como um puzzle.
Spike Lee cruza vários enredos: à cabeça, a homenagem/glorificação dos soldados negros (apadrinhados pela Primeira Dama Roosevelt) que participaram na Guerra e que morreram por uma América que ainda os olhava de lado; em pano de fundo, a história verídica do massacre nazi de centenas de civis na aldeia italiana de Sant'Anna di Stazzema, em Agosto de 1944. E aqui surge o "milagre": um rapazinho que sobrevive à mortandade e a outros percalços e que um dia é salvo por um "gigante de chocolate" (uma espécie de São Cristóvão) que o irá proteger.
É um filme duro, de guerra, mas está polvilhado de magia, de estranheza, de fé. Gostei disso. E gostei daquele plano onde os quatro soldados, fingindo olhar para cartazes de propaganda, nos olham num silêncio duro de ajuste de contas, à Spike Lee.