quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Homens na Lua

“Moon”,de Duncan Jones, tem uma dormência arrastada, uma monotonia e umas cores que me fazem lembrar o “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. A claustrofobia assalta-nos quando entramos no mundo pequeno e mecânico daquele homem que trabalha sozinho na Lua, há três anos, em prol da sustentabilidade do Planeta Terra. Está a poucas semanas do regresso a casa, mas este homem está a esvair-se (o actor é brilhante na encarnação do verdadeiro caco humano). Pensamos que é depressão: estar a falar para máquinas durante três anos e estar sozinho na Lua quando se tem uma loura amantíssima em casa deve dar cabo de um homem.
Mas existe o Gerty para fazer companhia e trabalhos domésticos. O Gerty é um robot abnegado de voz pausada e reconfortante, programado para o serviço e para a bondade cega. Este Gerty não tem nada a ver com o HAL 9000 do Kubrick, de maldade inteligente e caprichosa.
O filme avança, misterioso, com uma banda sonora hipnótica; mas às tantas o enredo torna-se confuso, até desconjuntado: há um acidente, um homem que recupera os sentidos e uma nova personagem surge para ocupar um lugar naquela estação lunar. Ficamos às aranhas. Será outra alucinação? O que se passa na cabeça daquele homem que já é dois? Mas as peças vão encaixando, desmontando-se no final uma maquinação de terráqueos experimentalistas e desalmados.
Pensávamos que tudo aquilo se passava na cabeça de um homem, que era tudo mais estranho, mas afinal o enredo de pura ficção científica (bem esgalhado é certo, mas um pouco banal) acabou por tomar conta do filme e entristecemos um pouco. O que não lhe retira o mérito de ser uma obra de suspense muito interessante que nos faz pensar sobre a vida humana. Tão efémera.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Um filme bem amanteigado

Tudo começou com um livro: "Mastering the Art of French Cooking" (primeira edição de 1961) da chef americana Julia Child, uma espécie de Susan Boyle do fogão.
Depois veio o blogue de Julie Powell, "The Julie/Julia Project", que escapou a uma vida frustrada enfiando-se na cozinha com um objectivo: cozinhar as 536 receitas do livro de Julia Child em 365 dias, o que incluía cozer lagostas vivas, desossar um pato e usar a divina manteiga. A caixa de comentários do blogue de Julie (que paira ainda na blogosfera) empanturrava-se e a sua empreitada gastronómica, très chic, tornou-se um fenómeno. Julia Powell escreveu um livro a contar a experiência, que vendeu como pãezinhos quentes, e a sua vida deu agora um filme que nos deixa o estômago confortado e quentinho, realizado por Nora Ephron.
São histórias reais que se cruzam. A de Paul e Julia Child, que Meryl Streep encarna na perfeição, com todos os decibéis e gestos no lugar, é uma verdadeira delícia; a de Julie e Eric é mais difícil de engolir: o jovem casal dos subúrbios que faz pela vida e pela relação, no meio de dramas existenciais, de crises de choro, vaidades e manjares celestiais.
Como um belo sonho americano, tudo acaba bem, e saímos confortados com esta sobremesa cinéfila, que se digere muito bem, como as farófias da minha mãe.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

As pequenas mãos de Xiao-Mei





"A bondade suprema é como a água
Que tudo favorece e com nada rivaliza.
Ocupando a posição desdenhada por todos os humanos,
Está muito próxima do Tao"

Lao-Tzu

terça-feira, 3 de novembro de 2009

They're coming to get you...


Gosto dos gestos lentos e desajeitados dos zombies a preto e branco que se passeiam, sempre trôpegos, no filme de George A. Romero, "Night of the living dead" (1968), que é um primor de realização. Tudo se passa numa noite (a marca das grandes obras), quando um grupo de vivos se refugia numa casa perdida no campo e tenta sobreviver ao assalto dos mortos-vivos que os querem comer. Mas a tensão do filme não virá só dos zombies apalermados e gulosos de carne humana. A tensão é muito mais forte dentro de portas, com o choque das personalidades encurraladas na casa: e há os cobardes e manhosos, os sensatos e protectores, os frágeis e os abnegados. E ninguém se irá salvar.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Nascemos velhos

Gostei de conhecer Constantin e Elena, que surgiam com gestos vagarosos de velhos no documentário de Andrei Dascalescu. Numa casa exígua de uma aldeia romena, atulhada de bricabraque, de tapetes tradicionais e de panelas, assistíamos às suas ocupações e aos apartes e comentários que iam atirando um ao outro na cumplicidade segura de um casamento cinquentenário. Pareciam os meus avós paternos, quando ainda eram um casal, no modo como falavam dos bailes da juventude e com aquela de já terem nascido velhos, com a carga de trabalhos que lhes calhou na vida, naquele mundo um pouco sujo da aldeia.
Constantin e Elena são dois velhos romenos que esperam pacientes a morte e que, no entretanto, se alegram com a vinda dos bisnetos, com mais uma Páscoa (belíssima aquela cena em que preparavam pães doces para a festa) ou com o carteiro que lhes traz a pensão.
O que andarão a fazer agora? Elena estará talvez a ajudar Constantin a vestir o seu corpo bojudo para a missa, onde ele canta no coro, ou a fazer no tear mais uma linha do seu tapete de flores. Constantin poderá estar a esta hora a sorver ruidosamente uma caneca de leite com café e chocolate, a rir-se desdentado de uma história qualquer ou a acender uma vela na campa do filho morto. E se lhe oferecerem outra vez uma lata de Pepsi, será que vai de novo emborcar um copo cheio, estalar os dedos e dizer para o ar, muito sério ai, que grande bebedeira que eu vou apanhar?

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Mon Chéri



“Chéri”, de Stephen Frears, que adapta o romance de Colette, parece aquele bombom. Um papel de embrulho a dar para o requintado, o som do fru-fru quando se desembrulha, depois o sabor doce a chocolate cortado por um travo forte a licor e, metida lá dentro, uma cereja enrugada.
O ambiente da Belle Époque é recriado com muito charme e requinte e o filme é narrado com humor. Há um toque de frivolidade e perversidade em tudo aquilo, que assenta bem ao rol de protagonistas, as profissionais do amor e seus frequentadores.
Léa, a caminho da meia-idade, envolve-se com Chéri, uns bons vinte anos mais jovem que ela, porque o menino se aborrece e porque lhe dá prazer. Esse é o momento doce da história, que começa a amargar, quando, passados seis anos de relacionamento, o rapaz tem de casar, convenientemente. A partir daqui, é ver o sofrimento de ambos que não podem viver um com o outro, nem um sem o outro e isso é um pouco atroz, como o licor daquele bombom. No final do filme, a cereja, enrugada mas ainda muito bela, fita-nos de um espelho com os olhos parados em estupefacção e lucidez. Mas este pequeno confeito do Frears não chegou para me adoçar a boca.

sábado, 10 de outubro de 2009

Cinema-amor


“O Sangue”, de Pedro Costa, faz 20 anos. João Bénard da Costa aparece nos extras do DVD a ler no meio de um bosque um manuscrito onde discorre sobre o filme. Ninguém falava com tanto amor sobre cinema como o Bénard. É um deleite vê-lo passar as folhas do seu bloco A4 e ouvi-lo falar, na sua voz arranhada, sobre o punhado de sequências que o fascinam neste filme duro e terno, a preto e branco, cheio de frases secas, de planos feitos a régua e esquadro, acompanhado de uma banda sonora tão incongruente e tão certa.
E Bénard a falar da clamorosa bofetada que abre o filme, do belíssimo plano com as árvores tortas, da sequência do trio que passa a duo amoroso, daquela exortação “Pede-me coisas” (que é um nó na garganta, de tão bela), dos dedos esculpidos do menino que dorme e que se agita num pesadelo e que lhe faz lembrar uma escultura que viu em Itália.
No ano passado, Pedro Costa foi convidado para programar a festa dos 50 anos da Cinemateca. Calhou justamente no dia dos meus anos e foi numa sala escura que os festejei, alegremente. Agora percebo por que razão Pedro Costa escolheu passar o filme “So dark the night” (1946), de Joseph H. Lewis, um film noir que conta a história de um detective francês de meia-idade que se recolhe no campo para repousar e se apaixona. No dia do noivado, a sua jovem noiva desaparece, para aparecer morta, tal como o seu antigo namorado. E o detective chegará à conclusão que foi ele, inconscientemente, o autor dos dois crimes: l’ amour fou. Pedro Costa justificou a escolha deste filme um pouco incógnito pela geometria de cada plano e, de facto, tudo parecia estar rigorosamente no sítio certo e era esse artifício tão evidente e tão regrado que lhe dava toda a força e beleza.
Sempre gostei de filmes aprimorados e com excessos de zelo e “O Sangue” emociona por ser uma luminosa declaração de amor ao grande cinema das frases contundentes, dos gestos dramáticos e dos planos construídos com cuidados de artesão.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Distrito 9

"District 9" é um filme primorosamente bem construído e imensamente credível. Grande parte dele é uma reportagem televisiva, cheia de grão e de vivacidade. Esse expediente é o seu maior trunfo e o que o torna próximo de nós. É fundo, complexo e arrebatador porque não se trata já do primeiro encontro, romantizado, entre humanos e alienígenas. Nesta história, esse encontro aconteceu há 20 anos e revelou-se um imenso pesadelo logístico e moral.
Os fantasmas do "apartheid" sul-africano são recuperados nesta fábula de extraterrestres animalizados, um milhão deles fechados há 20 anos num bairro decrépito de Joanesburgo, de terra alaranjada, suada e criminosa, incapazes de voltarem à sua nave-mãe que se avariou e que se mantém imóvel no céu.
Com o aumento dos crimes, dos desacatos e dos motins, os humanos já não toleram os "gafanhotos". Aqui entra a organização MNU, chamada para pôr em marcha uma campanha de deslocalização dos refugiados alienígenas. E tudo conforme a lei: levam papéis para os bichos fazerem um rabisco de consentimento e, se tiverem sorte, ainda fazem controlo de natalidade e apreendem armas tecnologicamente avançadas, mas que só funcionam, hélas, com alienígenas.
À frente desta façanha está o atinado e crédulo Wikus van der Merwe, o herói improvável do filme. Quando é infectado com um fluido negro que o vai transformando em "gafanhoto", torna-se alvo da cobiça dos humanos que vêem nele um trunfo biotecnológico, que precisa de ser esquartejado a bem do progresso científico e militar. A partir daqui, desenrola-se uma história de sobrevivência, com laivos de "ET" e de "Enemy Mine", bem servida de cenas de acção e comoção. Wikus, meio humano, meio alienígena, junta forças com um "gafanhoto" inteligente, com uma qualidade humana, diríamos, que se reflecte nos seus grandes olhos de ambâr (não é por acaso que o ET também tinha olhos grandes. Está tudo nos olhos).
O filme, inteligentemente, acaba em suspenso, e, com força, faço figas para que não haja sequelas.


quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Cinema e Ambiente


Ciclo Cinema & Ambiente (Cinemateca + Programa Gulbenkian Ambiente)


O objectivo deste ciclo de cinema é motivar uma discussão alargada com o público sobre a temática ambiental, contando para isso com o contributo de personalidades públicas de áreas diversas, convidadas para comentar os filmes.


A segunda sessão do ciclo, comentada por Inês Pedrosa, realiza-se a 13 de Outubro com o filme alemão Die Wolke (“A Nuvem”), de Gregor Schnitzler, 2006, em que dois jovens vivem uma relação amorosa no contexto de um acidente nuclear perto de Frankfurt que lança o pânico no país.

As sessões do ciclo Cinema & Ambiente são todas de entrada livre e realizam-se mensalmente na Cinemateca.

10 Nov, 21h30: Medicine Man (“Os Últimos Dias do Paraíso”), de John McTiernan, 1992. Comentado por Susana Fonseca

15 Dez, 21h30: The Trigger Effect (“Efeitos na Escuridão”), de David Koepp, 1996.
12 Jan, 21h30: Five, de Arch Oboler, 1951

9 Fev, 21h30: Soylent Green (“À Beira do Fim”), de Richard Fleischer, 1973

9 Março, 21h30: Into the Wild (“O Lado Selvagem”), de Sean Penn, 2007. Comentado por Paula Moura Pinheiro

13 Abril, 21h30: Les Glaneurs et la Glaneuse (“Os Respigadores e a Respigadora”), de Agnès Varda, 2001. Comentado por Helena Roseta

11 Maio, 21h30: Wind across the Everglades (“A Floresta Interdita”), de Nicholas Ray, 1958.

8 Junho, 21h30: Le Monde du Silence, de Jacques-Yves Cousteau e Louis Malle, 1956.

O ciclo Cinema & Ambiente termina no dia 13 de Julho com o filme The Happening (“O Acontecimento”), realizado por M. Night Shyamalan em 2008, numa sessão comentada por Viriato Soromenho-Marques, Coordenador Científico do Programa Gulbenkian Ambiente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

MOTELx 2



"Re-Animator" (1985), de Stuart Gordon, é um filme insano e fenomenal. Herbert West é um cientista que descobre um fluido capaz de dar vida a tecidos mortos. Depois de conseguir reanimar um gato morto, entra na morgue do hospital universitário onde estuda e começa, sem peias, a testar doses em corpos humanos, que não ressuscitam beatificamente como Jesus, mas como bestas descontroladas, para gáudio do espectador. Quando o Dr. Carl Hill, o pérfido neurocirurgião, quer apoderar-se da descoberta, perde, literalmente, a cabeça e torna-se no vilão mais arrepiante e espantoso que já vi, de morrer a rir, com alguns esgares de nojo à mistura. "Re-animator" é um clássico do terror que adorei descobrir.



Antes, passou a curta-metragem de Fernando Alle, "Papá Wrestling", que pôs o auditório ao rubro. Sempre que este papá brindava com uma morte atroz os miúdos que tinham roubado a lancheira ao filho, a plateia explodia a rir. Ver um imponente luchador mascarado, vestido de cor-de-rosa, a esborrachar crânios e pernas de crianças é uma cena deveras risível. E não estou a ser irónica.

domingo, 6 de setembro de 2009

MOTELx 1


Dei logo de caras com o John Landis quando subia a escadaria do Cinema São Jorge para experimentar, pela primeira vez, o Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Foi um bom augúrio. Estreei-me numa sessão especialíssima: "A Dança dos Paroxismos", filme de 1929 de Jorge Brum do Canto, musicado, ao vivo, por Legendary Tigerman e Rita Redshoes. Foi um momento absolutamente mágico. A música soou-me cintilante, bem entrosada naquele velho filme que espantava pelo arrojo técnico e pela beleza simples. A história tem por base um "poemeto" de Leconte de Lisle, "Les Elfs". Conta a história nefasta de um cavaleiro galante que se detém no Reino dos Silfos, onde se cruza com a rainha Banschi. Esta bela, ao pousar a sua mão branca no peito do cavaleiro, desencadeia uma desgraça: a noiva roliça que o esperava morre e o cavaleiro segue-a na agonia.
O filme é hipnótico, expressionista, onírico. Gostei dos planos sobrepostos, dos rostos recortados no céu, que ficavam a pairar no ecrã, e a música, discreta, não se impunha, nem se exibia. Até a ingénua legendagem era um regalo para os olhos.


quinta-feira, 6 de agosto de 2009

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sem faísca

A vida e a morte de Harvey Milk, o primeiro gay (assumido) a ser eleito para um cargo público nos Estados Unidos, em 1978, é contada com fluidez por Gus Van Sant, mas sem a faísca formal que admiro nele.
O filme é todo Sean Penn e a interpretação magistral que faz: a paixão com que beija os amantes, o olhar apaixonado que lhes deita, a sua vivacidade de activista gay são desarmantes. Emile Hirsh ("Into the Wild") não lhe fica atrás no talento, com o seu gay vivaz de cabelos encaracolados e óculos impossíveis.
É um filme informativo; um documento importante que nos mostra, através de impressivas imagens de arquivo, a humilhação e a violência de que eram vítimas os homossexuais na América.
Gus Van Sant, assumidamente gay, não fez um filme inocente em pleno ano de 2008, onde na América se votavam referendos sobre casamentos gay.
O filme resulta certinho, o que me aborrece. No entanto, continuo a achar Gus Van Sant um exímio contador de histórias (visuais) americanas.

domingo, 26 de julho de 2009

F*cking love boat

Richard Curtis (argumentista de "Bridget Jones", "Notting Hill", "Mr. Bean", "The Black Adder" :) ou da deliciosa série "The Vicar of Dibley") realizou este grande "feel-good movie" que é "O Barco do Rock", um hino às rádios pirata britânicas dos anos sessenta, servido por uma poderosa banda sonora e um excelente elenco (com Philip Seymour Hoffman à cabeça).
"Radio Rock" é uma rádio pirata que abana sobre (e sob) as ondas do Mar do Norte, ao som do rock and roll, cheia de cromos (The Count, o Bob das barbas, o robusto "Doctor Dave", a lésbica), cada um com a sua graça, irresistíveis. A exuberância e a pândega que agita aquele "barco do amor" contrastam com a cara de pau do ministro que quer banir as rádios pirata do Reino Unido (um divertido, de tão azedo, Kenneth Branagh), que aparece sempre mergulhado em cores frias.
Há momentos trágicos, melodramáticos, que parecem levar o filme noutra direcção, mas não saímos enganados: estávamos à espera de um "feel-good movie" e é isso mesmo que temos. E se o "Midnight" Mark me perguntasse: "So, how "bout" it then?" eu respondia: já vi melhor, mas até foi bom.


segunda-feira, 20 de julho de 2009

"This kind of certainty comes but once in a lifetime"

O calor, as pontes e as flores. Francesca e o seu jeito italiano. As mãos de Francesca a rodear a face, envergonhada. Os olhos, quando brilhavam de espanto. Francesca no banho, apanhando os pingos do chuveiro. O primeiro beijo, sem jeito, sentido, a queimar. I realized love won't obey our expectations, it's mystery is pure and absolute.

Como é bom rever "The Bridges of Madison County"









segunda-feira, 13 de julho de 2009

Brüno: de boca bem aberta

Eu gosto do Sacha Baron Cohen. Admiro a comédia física que faz, iconoclasta, embora indigesta. A última criatura que encarnou foi o inefável Brüno: homossexual austríaco, repórter de moda, exibicionista, tirânico e comovente, cujo objectivo de vida é ser famoso. O tipo tem graça, com todos os tiques e jeitos de boca que faz. As cenas, encenadas ou não, não nos deixam indiferentes de tão rasteiras, palermas e assustadoras. É que o Brüno ao lado das pessoas que vai encontrando nos Estados Unidos e noutros sítios é até uma "pomba da paz", literalmente. O que o Sacha Baron Cohen faz, para mim, não é tanto ridicularizar os homossexuais (concedo: talvez aqueles que se prestam ao ridículo), mas apontar as homofobias e as intolerâncias que persistem por aí. Se o sexo homossexual é risível, o sexo heterossexual também o é. E de que maneira. Se o "orgulho gay" é risível, o "orgulho heterossexual" ainda pode ser pior e a cena final no ringue machão é mesmo de antologia. "Brüno" atira-nos muita porcaria à cara, mas nós é que somos gozados, por termos pago para ver.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Pobres, mas asseados

"A casa de banho do Papa", nome sugestivo do filme de 2007 de Enrique Fernández e César Charlone, é um gozo. Retrata a azáfama empreendedora (e verídica) dos habitantes de Melo, no Uruguai, a umas semanas da visita do Papa João Paulo II, corria o ano de 1988.
Ao longo do filme seguimos a vida de Beto e dos seus colegas de contrabando, que ganham a vida a pedalar nas suas bicicletas até à fronteira com o Brasil. Depois voltam para as suas barracas de pedra e para as suas magras sopas de caldo. O retrato da pobreza naquele canto verdejante do Uruguai é impiedoso.
Mas a visita do Papa vai mudar tudo. Vai trazer milhares de brasileiros e prosperidade à terra. Vem aí o maná dos céus, pensam eles, e vemos os habitantes da cidadezinha a congeminar em que negócios vão enterrar as poupanças: invariavelmente, todos apostam no chouriço e nas gulodices e toca de comprar quilos e quilos de carne e de encher balões em honra do Papa.
Ora, o Beto contrabandista teve uma ideia melhor: construir uma casa de banho para “serviço completo ou parcial”, que os peregrinos vão pagar para usar, pensa ele.
No dia em que o Papa chega, os habitantes de Melo armam as suas barracas na rua principal do lugarejo e dispõem as comezainas. Depois do discurso de João Paulo II, fixam os olhos na estrada de onde virá a multidão devoradora de tartes e chouriços, pensam eles. Mas todos passam indiferentes e dá-nos um aperto no coração ver aqueles pobres empreendedores de mãos estendidas, carregadas de sanduíches que ninguém quer e o Beto, desesperado, no meio da multidão, a perguntar: “O senhor precisa de ir à casa de banho?”
Mas foi ele quem se safou melhor depois daquele fiasco monumental: tendo ele a única casa de banho decente das redondezas, acabou por fazer o negócio da retrete com a vizinhança.
“El baño del Papa” é uma comovente tragicomédia sobre pobres, sobre os laços de afecto e de solidariedade, sobre as pequenas alegrias da vida, sobre a dignidade de quem não consegue sonhar além de uma casa de banho, de uma mota ou de aviar cem pães com chouriço. Há a filha adolescente do Beto contrabandista, que quer estudar para ser “periodista” na rádio local e que se revolta com a falta de ambição e com a tacanhez dos pais. Acaba por se aperceber que à sua maneira tosca e desajeitada também o pai contrabandista quer ser melhor.
É um filme de emoções, que nos faz rir de tão triste que é.
E será sempre especial para mim, pelas circunstâncias em que o vi: em boa companhia, sob as estrelas, no Anfiteatro da Fundação Calouste Gulbenkian (abençoada seja), a ouvir o vento a abanar as árvores e o coaxar crocante das rãs. Uma cena perfeita.
Já andarmos perdidos à noite no jardim da Gulbenkian à procura do Anfiteatro foi um momento inquietante e embaraçoso, quando os seguranças nos toparam.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Karl Malden

O actor Karl Malden morreu ontem, aos 97 anos de idade, em Los Angeles. Até hoje só o vi enquanto "Mitch", no filme de 1951 "A Streetcar Named Desire", de Elia Kazan. Era o melhor amigo de Stanley Kowalski/Marlon (nada) Brando, tímido e respeitador, que se apaixonou pela beleza sulista e grandiloquente de Blanche DuBois (uma Vivien Leigh de arrepiar). Depois, decepcionou-se: "No, I don't think I want to marry you anymore...no, you're not clean enough to bring into the house with my mother."

Grande filme. Grande actor.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Território de afectos



No filme “A Zona” o hospital é um território-limite, onde se pode morrer e nascer paredes meias. Sandro Aguilar filmou no Hospital de Santa Maria e no Hospital do Desterro, em Lisboa, fora dos horários das visitas, noite dentro, aproveitando alas inactivas, estacionamentos ou corredores de manutenção, “para não interferir.” Visitou Unidades de Cuidados Intensivos e reproduziu esses espaços “de forma muito sintética” no seu filme.
No cinema que faz, a narrativa não tende a seguir o tradicional princípio das causas e dos efeitos. O que Sandro Aguilar gosta de trabalhar são “esboços” de narrativas que lhe permitem fazer um tipo de cinema “mais próximo do poético ou das artes plásticas.” Apesar de reconhecer que esta obra, pela forma como está construída e filmada, tem uma dimensão “hipnótica”, nunca foi sua intenção criar uma espécie de “momento lounge” onde o espectador se elevasse na hipnose. Pelo contrário, ao espectador é proposto um exercício de pensamento e de construção, porque “tudo aquilo tem uma razão de ser.”
O que faz n'“A Zona”, explica, é seguir duas personagens, alternando, constantemente, as coordenadas do espaço e do tempo: “O passado contamina o futuro, o presente, propriamente, não existe, e é difícil identificar onde está o nível de realidade e outros níveis de outras realidades.” Admite que é uma espécie de puzzle que se coloca diante do espectador, mas ao invés de se formar uma imagem una e completa, o objectivo é ver este puzzle “na sua incompletude” e jogar com as várias informações que podem preencher as lacunas da narrativa. “Há uma razão para cada uma das coisas, mesmo que apareçam dispersas, e que permitem ao espectador acompanhar o filme e criar as suas próprias relações.”

Um filme muito físico

Sandro Aguilar descreve “A Zona” como um filme “muito físico.” Nalgumas cenas, a câmara aproxima-se violentamente dos corpos, porque “às vezes é preciso estarmos muito próximos para saber se esses corpos, que estão no limiar, estão vivos ou mortos, se estão a dormir ou acordados”, ou espia, impotente, o corpo de um recém-nascido numa incubadora. “A câmara gravita em torno do bebé e acompanha aquele momento. Tenta aproximar-se e não consegue. Há uma procura de um ângulo de onde se possa ver e entrar. Através dos olhos, da boca, há coisas que se comunicam, há túneis, há uma espécie de pontes para uma consciência e, às vezes, é só a câmara a esbarrar nessas impossibilidades.”
Além dos enquadramentos que denotam um grande rigor formal, os sons que povoam o filme também foram cuidadosamente ponderados. A sonoplastia é, aliás, uma das dimensões que mais gosta de explorar, sendo meticuloso na descrição dos ruídos no próprio argumento.
N'“A Zona” o som que se ouve “não é, de todo, realista: faz uma espécie de síntese das coisas que me interessam num espaço e, às vezes, retira tudo o resto.” O que o som faz neste filme é “retirar realismo à imagem” e instalá-lo nessa espécie de “limbo” onde Sandro Aguilar queria que ele estivesse.
A voz humana ouve-se raramente. O realizador rejeita “o diálogo funcional” e afirma que só usa diálogos em dois contextos: “Ou quando é completamente irrelevante o que se está a dizer ou quando é absolutamente essencial.”
Mas há uma razão para tantos silêncios: as personagens são parcas em palavras porque “o estado em que estão e o lugar que ocupam está para além das palavras. Há sempre uma razão para não falarem muito.”


Cinema-liberdade


“A Zona” é a primeira longa-metragem do realizador Sandro Aguilar, estreada na Competição Internacional do Festival IndieLisboa'08, já apresentada nos festivais de Locarno, Londres, Mar del Plata ou Turim, e que passou este ano, como um meteoro, por algumas salas de cinema nacionais.
Nas seis curtas-metragens que compõem a sua filmografia e nesta sua primeira longa, Sandro Aguilar tem procurado explorar “uma espécie de território afectivo, limite, entre sonho e realidade, entre vida e morte.”
Sandro Aguilar nasceu em 1974. A paixão pelo cinema não sabe de onde lhe vem, mas nunca se imaginou a fazer outra coisa que não fosse a realizar filmes. Aos sete anos de idade já ia sozinho ao cinema. Uma vez que era a mãe que lhe dava dinheiro para o bilhete, via a ida ao cinema “como uma experiência de presente” que lhe era dado e começou a ver de tudo.
Gosta de tantos realizadores e do cinema tão diferente que fazem que é difícil nomeá-los. Desenrasca a fórmula: “Tanto gosto de Ingmar Bergman como de John Carpenter...”
Fez o Curso de Cinema, na área de Montagem, na Escola Superior de Teatro e Cinema. Sandro Aguilar gosta desse momento “dado a minúcias” que é a montagem de um filme. Regra geral, atravessa todas as fases, desde a escrita do argumento à realização, mas o que lhe dá mais gozo é a montagem, porque é a fase das grandes decisões. “É o momento em que vou cristalizar todas as ideias, até à forma final. Tenho um fascínio particular porque é um dos momentos em que as decisões mais determinantes estão a ser tomadas.”
Em 1998 fundou a produtora O Som e a Fúria — a expressão surge na tragédia “Macbeth”, de William Shakespeare, e dá título à obra de 1929 do escritor norte-americano William Faulkner, cultor da técnica literária do fluxo de consciência — que procura acolher cinema de autor e independente.
Para Sandro Aguilar, o cinema português “é muito livre” e um dos mais interessantes do mundo. Se há preconceitos contra o cinema português é por desconhecimento, afiança. “Às vezes não se têm experiências positivas porque não se conhece, não se viu e não houve disponibilidade para ir ver.”
Mas a frustação que se pode sentir diante de um filme pouco convencional tem na sua base o “equívoco” de ver o cinema apenas como entretenimento. Constata que o cinema tem dificuldade em passar a barreira do entretenimento “de forma consistente e continuada” por estar ainda muito ligado à pesada indústria do entretenimento. “As pessoas percebem que um quadro possa ser feito para três pessoas apreciarem, mas acham mais difícil compreender que um filme possa ser feito para 200 ou 300 espectadores.”
Em 1998 realiza a sua primeira curta-metragem, “Estou Perto.” Seguiu-se, em 2000, “Sem Movimento” e, um ano depois, “Corpo e Meio.” “Remains” (2002), “A Serpente” (2005) e “Arquivo” (2007) são as curtas-metragens que se seguem na sua filmografia. Quatro dos seus filmes — “Estou Perto”, “Sem Movimento”, “Corpo e Meio” e “A Serpente” — foram premiados em reconhecidos certames de cinema em Portugal e no estrangeiro, como os festivais de Vila do Conde, Veneza ou Locarno. Uma maior disponibilidade na sua vida ditou o passo para a longa-metragem com o filme “A Zona”, de 2008.
O seu próximo filme será uma curta-metragem. Sobre este filme não fala: ainda está a tentar desvendá-lo para si próprio.


Filipa Lourenço





Entrevista publicada no Notícias Médicas nº3038, de 24.6.09

domingo, 21 de junho de 2009

Em câmara lenta

"Shotgun Stories", de Jeff Nichols, transporta-nos para um Arkansas soalheiro, onde a vida se arrasta monótona entre campos de algodão e viveiros de peixe. É uma história de irmãos. Son, Boy e Kid Hayes (nem nome de gente têm) foram abandonados pelo pai e cresceram negligenciados por uma mãe fria e rancorosa. Este pai endireitou a vida, deixou de beber e foi criar uma nova família. Este pai morreu. No dia do enterro, os meios irmãos trocam palavras azedas e começa aí um jogo de agressões e azedume entre os dois clãs.
Jeff Nichols fez um filme extraordinário pela sensibilidade com que conta a história. Somos embalados na suave rotina do trabalho e da vida naquele canto lento da América e, em crescendo, assistimos ao pulsar da raiva dentro daqueles homens, que explode de forma muito controlada no filme: Jeff Nichols mostra só o essencial e é eficiente nesse seu minimalismo.
Os actores impressionam: Son Hayes (grande Michael Shannon), tem um olhar magoado, a fala arrastada e anda curvado, como que embotado pelo calor. É um homem bom e resignado. Boy Hayes, corpulento, tímido e comodista, é encantador pelo golpe de asa que pressentimos nele. É outro homem bom e resignado.
Há aquele Shampoo, o rapaz enfaixado com ligaduras, não sabemos porquê, um pouco lerdo e de óculos de lentes grossas, que resulta numa personagem esteticamente inesquecível. As suas breves aparições são essenciais, porque são os seus comentários atirados de forma negligente que fazem avançar aquela história trágica de vingança, que acaba como tem de acabar: na paz dos campos de algodão.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Pós-apocalipse em tons sépia

Este "Terminator Salvation" tem pinta, mas é daqueles filmes que só vivem de uma poderosa artilharia de efeitos especiais, o que não deixa de nos deleitar. É de encher o olho, com cenas de acção alucinantes, onde a brutalidade e a eficiência das máquinas media forças com a resistência e a manha humana. Agradou-me a cor do filme, em tons sépia, e aqueles cenários pós-apocalípticos, que me fizeram voltar para dentro daquele livro cru, arrepiante e belo que é "The Road", do genial Cormac McCarthy.
Pelo meio, a magna reflexão do que faz de nós humanos e blábláblá, já a pingar para o lamecha, o que não deixa de nos deleitar.

sábado, 13 de junho de 2009

Zack and Miri make love...



Já não via um destes há uns tempos: um filme de piadas boçais, escatológicas e sexuadas, à americana. Este "Zack and Miri make a porno" não engana ninguém, mas estava à espera de melhor, tendo lá um Seth Rogen com o seu riso nasalado, que eu tinha gostado de ver no filme "Knocked Up." Até agora, só o vi fazer papéis de bandalho que se revela um tipo responsável e porreiro, mas reconheço-lhe talento.
A história é esta: dois amigos de longa data que partilham a casa estão afogados em dívidas. Já lhes cortaram a electricidade e a água e estão em risco de perder o tecto, num Inverno de estalo, que até dói ver. Decidem ganhar dinheiro a fazer um filme pornográfico e, no entretanto, descobrem que estão apaixonados um pelo outro. É isto, com uns quantos gags pelo meio e lá temos de lembrar as centenas de "fucks" que são atirados ao longo do filme. Acompanhamos os passos da produção do porno: a selecção do casting (o garanhão, a dominatrix, a loura avantajada, o gay e o homem da câmara, que protagonizará uma das cenas mais trágicas de que há memória), a escolha aturada do título do filme, que é das sequências mais divertidas (saíram-se com um "Star Whores", que deu para o torto), o argumento, que, bom, não falemos disso e as artísticas filmagens.
O filme porno fica incompleto e não sabemos se vinga. O outro "filme", a descoberta do amor por Zack e Miri, acaba com muitos sorrisos, lágrimas, suor e aquilo que estão a pensar.


Nota etnográfica: o poster do lado esquerdo foi banido dos EUA. Substituíram-no pelo da direita.


quarta-feira, 10 de junho de 2009

Deixa-me entrar na tua pele



A neve, o frio, a pré-adolescência e o sangue misturam-se primorosamente neste filme belo e delicado do sueco Tomas Alfredson, "Let the right one in" ("Deixa-me entrar"), uma iniciação ao amor e à dor que mete vampiros numa Suécia invernal dos anos 80, abafada em camisolas de lã. É um filme perturbante, não tanto pelas cenas macabras que não podiam faltar ao género, mas sobretudo pelas tensões que atravessam as crianças que pululam a história. Ali não há inocentes: estão todos manchados de sangue, de crueldades ou de vingança.
Oskar, o rapaz louro que me faz lembrar o principezinho de Saint-Exupéry a cuidar da sua rosa, maltratado pelos bullies da escola, e Eli, a vampira presa num corpo de menina, são imensamente expressivos. Eli é a mais inquietante, por ser uma criança sem idade, uma mulher madura presa num corpo pré-adolescente e que seduz inocentemente (?) um miúdo de 12 anos. E tinha uns grandes olhos verdes azulados, calmos e silenciosos. A grande sequência, para mim, é aquela espécie de pedido de amor e de compreensão que a vampira ensanguentada faz ao miúdo: "Põe-te na minha pele." Talvez que o amor comece por aí.
O filme está repleto de tensões sexuais, que são, aliás, apanágio de todas as histórias de vampiros que se prezem. Há ali relações dúbias, como a que liga a vampira ao seu suposto pai. Na novela que deu origem ao filme, do sueco John Ajvide Lindqvist, este "pai" era um pedófilo, mas no filme isso não é claro. Pode até ser amor e, no final, tememos que Oskar se transforme, também por amor, nesse angariador de sangue abnegado. Há também a homossexualidade do pai de Oskar, que nem ao filho escapa.
Gostei da beleza fria e silenciosa deste filme e gostei do sangue que salpicava meticulosamente o rosto branco de neve da vampira Eli.





















domingo, 7 de junho de 2009

33 em 1

"Chacun son cinéma ou Ce petit coup au coeur quand la lumière s'éteint et que le film commence" são 33 declarações de amor ao cinema, de três minutos cada, encomendadas para celebrar os 60 anos do Festival de Cannes.
Está lá um depurado e bem-humorado Manoel de Oliveira, perturbantes Cronenberg e Lars von Trier, comoventes Iñárritu, Kiarostami e Lelouch, um absurdo David Lynch, um púbere Gus Van Sant, um festivo Walter Salles, um sensual Wong Kar Way, uma mordaz Jane Campion, um surpreendente Polanski ou um interventivo Wim Wenders.
O que resulta é um mosaio criativo, caótico e heterogéneo que nos faz dar a volta ao mundo e nos enreda as ideias, porque é difícil absorver tudo aquilo de enfiada: queríamos ficar a matutar sobre as histórias que se esboçavam num filme, mas hop, era preciso dar espaço para ajeitarmos mais três novos minutos de cinema.
Gostei do nosso Oliveira, que encenou um "encontro único" entre o comunista Krutchev e o católico Papa João XXIII, a última aparição no cinema de João Bénard da Costa (e que bela aparição, tão viva e alegre, embora se sinta o peso da doença); gostei de "Anna", a cega que se comovia ao ouvir "Le Mépris", de Jean-Luc Godard; gostei da marotice de Polanski, do humor macabro de Lars von Trier ou da frenética música cantada e tocada por Castanha e Caju numa paródia ao circo que é Cannes, que o brasileiro Walter Salles filmou; adorei Gus Van Sant, como sempre deslumbrante e minimalista; Wim Wenders fez um filme inquietante, ao captar uma sessão de "videocine" no Congo, onde homens e crianças (impressionantes e comoventes) viam absortos um filme de guerra em tempos de paz rara.
Houve de tudo neste filme colectivo: egotismos e nostalgias, lágrimas, humor, estranheza, desconforto, mordacidade, amor e reconhecimento. Foi uma experiência caótica e emocionante que gostei de viver.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Ad nauseam



Gosto daquele icónico olho de pestanas esticadas e postiças no início do filme "A Clockwork Orange" (1971), de Stanley Kubrick, adaptação da novela de Anthony Burgess. Mas à medida que entramos naquele ambiente desconcertante de "ultra-violência" onde a ocupação de uma quadrilha de jovens é beber leite, violar e espancar, o incómodo instala-se e não nos larga.
Mais perturbadora é a música que acompanha toda aquela violência descabelada: Rossini, que impõe ritmo a um frenético ménage à trois; o popular "Singing in the rain", que marca uma das sequências mais atrozes do filme, e Beethoven, que se torna na paixão e no desespero do líder do grupo de rufias, Alex DeLarge, o do olho pestanudo.
Curioso o percurso de Alex, que depois de ser apanhado em flagrante delito e preso se sujeita a uma técnica experimental que o irá reabilitar de maus pensamentos. Bastará um gesto violento ou menos próprio para se nausear quase até à morte.
Se não fosse o humor e o nonsense de algumas cenas, não ia aguentar este filme perturbante, mas que até acaba bem: quando o sacrificado Alex, engessado numa cama de hospital depois de uma tentativa falhada de suicício ao som de Beethoven, acorda bem-disposto de um sonho erótico, que era suposto fazê-lo vomitar, e exclama:"I am cured all right!"


Valha-nos o sentido de humor desta "Laranja Mecânica".






Ambiguidades

Conversando com MVA, diz-me isto, através da mesa onde repousavam um queque de frutos do bosque e um café: que a obra de arte (filmes, pinturas, livros) só é estimulante se for ambígua. E diz o mesmo das pessoas. Registei.

domingo, 24 de maio de 2009

Peddy-Paper no Vaticano


Muito se corre naquele "Anjos & Demónios", o filme de Ron Howard adaptado do romance de Dan Brown sobre a suposta vingança dos "Iluminados" sobre a Igreja Católica.
Trata-se de um "peddy-paper" demoníaco nas ruas do Vaticano, com um Tom Hanks a raciocinar a 100 à hora à procura dos locais onde quatro cardeais serão marcados e executados como forma de vingar "a purga" a que foram sujeitos os "Illuminati", homens de ciência que enfrentaram o conservadorismo da Igreja.
Pelo meio há uma ameaça sui generis: o Vaticano será destruído com anti-matéria roubada de um laboratório secreto no CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire) e que estava a ser investigada como fonte de energia alternativa (não pode: "If we could assemble all the antimatter we've ever made at CERN and annihilate it with matter, we would have only enough energy to light a single electric light bulb for a few minutes", informa o CERN).
Apesar do simplismo, como não podia deixar de ser, gostei de ver a física de partículas metida nesta história. Era inevitável, com a plasticidade metafórica de que goza "a partícula de Deus", o bosão do sr. Higgs. E lá estava, engenhoso, o confronto entre Deus e a Ciência (e cito, porque gosto, Gonçalo M. Tavares, quando diz: "(...) A única forma de prova definitiva em ciência seria efeito da existência de uma máquina de Deus. Máquina de dividir em dois (em Verdadeiras e Falsas) as proposições do Mundo (linguagem que os homens colocam sobre a terra.)"
O filme tem ritmo (talvez até demais), bons efeitos especiais e a história não nos deixa adormecer, mas fina-se naquela estratégia estafada de os bons do início serem os maus no fim. "Anjos & Demónios" entretém, mas não convence nem deslumbra.



quinta-feira, 21 de maio de 2009

Play it again, Johnny Guitar

Apagou-se uma vela na Cinemateca Portuguesa.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

"Being alive is so damn sweet"


"Watchmen", a BD dos anos 80 de Allan Moore/Dave Gibbons/John Higgins, agarrou-me desde os primeiros quadradinhos pela mestria com que dava a ver a história: como o pequeno pormenor dava lugar, num quadrado mais à frente, a uma cena ampla; como se passava, com suavidade, de uma cena do presente para um vislumbre do passado só de olhar para uma fotografia antiga; como a mesma cena era vista sob várias perspectivas e que gozo isto me dava.
É um livro negro, cheio de pancadaria e sangue, com heróis demasiado humanos e por isso ridículos nas suas fatiotas. Estão cheios de traumas, de dores, de pecados e insatisfações.
The Comedian, um peão na trama, que paira no livro como um fantasma; Doctor Manhattan, o freak de serviço, que reaprendeu a humanidade em Marte nesta tirada deslumbrante: "...but the world is so full of people, so crowded with these miracles that they become commonplace and we forget...I forget..."; The Nite Owl, o ornitólogo sensível; a frágil Laurie/The Silk Spectre; Rorschach, de cara e passado borrados, que força o bonacheirão Dr. Malcolm Long a fitar o abismo e a fazer-se mais humano e Adrian Veidt/Ozymandias, o Alexandre o Grande reencarnado que impede uma iminente guerra nuclear ao simular uma invasão extraterrestre. Sacrificou metade da população de Nova Iorque, mas conseguiu a paz no mundo...até que se descubra a fraude (estará o "New Frontiersman" à altura?)
"Watchmen" é uma BD dura, mas rica de recursos: o livro está polvilhado de textos/anexos que contam histórias paralelas e que alargam o mundo daquela história metida em quadradinhos, com pedaços de prosa, recortes de jornal, fait-divers, bandas desenhadas dentro de bandas desenhadas; depois há ecos de músicas (Bob Dylan, John Cale), tiradas de Einstein, William Blake ou Nietzsche, que aprofundam o drama.
Naquele mundo caótico, violento e no fio da navalha, que também é o nosso, havia sempre quem lembrasse como era bom estar vivo e poder abraçar alguém: "Oh, it's sweet. Being alive is so damn sweet."

terça-feira, 12 de maio de 2009

"A Zona" é um lugar estranho

Com mente aberta. Foi assim que me recostei no banco guinchante do Cinema Londres para ver "A Zona", de Sandro Aguilar. Expectativas, havia algumas. Tinha lido umas linhas sobre o filme, onde se dizia que era preciso olhar para aquele ecrã como quem vai a uma galeria de arte, porque cada plano era "emoldurável", que é uma expressão bonita.
Com mente aberta e algumas expectativas contemplei este objecto, ou antes, primeiro ouvi. O filme é todo ruídos: carros, comboios, conversas em corredores de hospital, choro de bebés, suspiros e muitos silêncios. E tudo coberto por uma névoa de tons azuis (que eu já tinha visto no poderoso filme que é "Alice"), caras desfocadas, zooms incríveis que captam cada poro da pele e cada pêlo da barba de um homem ou um olho pestanudo e esbugalhado que parecia saído do filme "Un Chien Andalou" de Buñuel e tem graça porque nesta "Zona" há muitos cães, doentes e um sem olho.
Contemplei estes quadros pintados pelo realizador e pensava se não estaria perante o embuste do artista que quer fazer bonito e foi sempre assim, entre desconfiada e deslumbrada, que olhava para cenas como aquela em que se vê um prematuro a chorar, de mansinho, na sua incubadora. Pensei logo que aquilo era batota, porque é fácil ser "artista" quando se tem à frente um prematuro frágil e desdentado, a mover os dedinhos e a boquinha. É demasiado fácil. E, no entanto, mexe connosco. E que dizer daquela cena em que umas mãos enluvadas lavam o corpo de um homem em coma? É só isto, mas é uma cena hipnótica pelos sons e pelos gestos daquelas mãos eficientes. E o filme joga-se assim, em planos lentos, cheios de ruídos, banais, mas que me puseram, num par de cenas, num alvoroço de pele de galinha e isso é alguma coisa.
Ali há histórias, mas são-nos dadas aos pedacinhos, toma lá mais uma e amanha-te, e nós vamos tentando dar um sentido àquelas personagens que só olham no vazio, fumam cigarros, arrastam-se por casas, bebem cafés, choram, andam de mota e morrem e que mal se ouvem falar. Mas há histórias e é assim que eu as conto para mim: há este Rui de olhos tristes que tem o pai em coma, que deambula pela casa da sua infância, que experimenta fatos velhos, olha para fotografias, abandona um cão e lembra-se daquele dia em que o seu pai abandonou a sua mãe e fugiu com ele para um lado qualquer. Há esta Leonor, que perde o marido num desastre e tem um filho prematuramente. O Rui e a Leonor, que se conhecem de uma tresloucada festa de Natal do escritório, reencontram-se no hospital, já pisados pela vida, e vão juntos numa mota pela estrada fora até morrerem os dois num desastre. Há uma história mais enigmática pelo meio. O homem que vive numa barraca com a mulher grávida, rodeado de cães e que uma noite, deambulando na floresta, cai redondo no chão, com sangue a escorrer da boca, talvez envenenado pela mulher.
E nas cenas finais pregam-nos à frente uma moldura com umas árvores abanadas pelo vento e só me vem à cabeça aquela cena do "Family Guy" em que o Peter Griffin, de câmara de vídeo em punho, se extasia com a visão de um saco de plástico a esvoaçar ao vento (seria "Beleza Americana"?) e nisto vemos Deus na sua nuvem a arengar: "É apenas um saco do lixo a voar!" E no entanto...
"A Zona" é um lugar estranho, mas gostei de lá estar.

domingo, 10 de maio de 2009

Os bons rebeldes

J.J. Abrams tinha a missão de rejuvenescer as personagens da série criada por Gene Roddenberry e fazer estourar um blockbuster. Cumpriu em pleno neste "Star Trek" teenager cheio de graça que nos mostra como nascem as amizades que interessam e como se fazem heróis a partir de um punhado de bons rebeldes.
Fabulosa a cena do pré-adolescente James Tiberius Kirk, órfão de pai, a conduzir no século XXIII um carro vintage do século XX, enquanto curte uns velhinhos Beastie Boys. Quando se aproxima de um precipício, acelera, faz um drift e salta do carro. Salva-se por um triz, agarrado à borda do abismo e esta será uma cena recorrente no filme, ver o Kirk por um fio. Em paralelo, vemos o jovem Spock a rebelar-se contra a lógica fria dos vulcanos e a mostrar as emoções que lhe vêm dos genes humanos da mãe quando sova o bully da escola.
O conflito interior de Spock, dividido entre a razão e a emoção, foi para mim um dos ingredientes mais interessantes do filme. Um argumento engenhoso colocou o velho Spock (Leonard Nimoy) ao lado do novo (Zachary Quinto) e foi comovente ver esse velho sábio e despretensioso a dar conselhos a um jovem "eu" ainda duro e relutante em aceitar a sua humanidade.
O filme é pura diversão do princípio ao fim. Vi-o com um contínuo esgar sorridente: temos sequências em que parece um típico filme de "high school" americano, cenas primorosas de acção e um vilão que destrói planetas por vingança, porque lhe roubaram o amor. No fundo, no fundo, todo o filme está sob a influência do amor. E isso é bom e é isso que encanta.

PS: Não sou "trekkie" e por isso perdi, provavelmente, muitos pormenores só acessíveis aos iniciados. No entanto, identifiquei a "heresia" no xadrez amoroso da Enterprise...




















quinta-feira, 7 de maio de 2009

Espero bem que sim...

"Há no cinema e em todas as artes uma função terapêutica. A arte melhora os indivíduos. Faz-nos sonhar, faz-nos manter a esperança, faz-nos mais humanos, mais solidários, mais activos e melhores cidadãos."
António Roma Torres, Psiquiatra e Cinéfilo, em entrevista ao NOTÍCIAS MÉDICAS (nº3031, de 6.5.09)

terça-feira, 5 de maio de 2009

A long time ago, in a galaxy far far away...


Fui alfabetizada no universo da primeira saga "Star Wars", que eu só conhecia aos bocados. Aquilo tem mesmo ressonâncias épicas: começa in media res, a palavra "destino" é dita vezes sem conta e há um filho que é levado ao pai que não conhece pela força do destino e que lhe salva a última réstia de humanidade que guarda no corpo de velho andróide rendido ao lado negro da Força.
Tiro o chapéu aos efeitos especiais (as naves espaciais, a Estrela da Morte, os sabres de luz e o zummzumm que faziam, o Yoda, o Jabba The Hutt, o R2-D2 que levava dentro um anão ou os olhos de tarântula do Darth Vader). Gostei da farda dos soldados imperiais, que quando tiravam a máscara pareciam todos saídos de um pub inglês ou de uma vacaria escocesa. Gostei dos cenários (o deserto árido no Epidódio IV, o deserto gelado no Episódio V e a floresta de sequóias no Episódio VI), mas o George Lucas carregou demais na bonecada: parecia os Marretas intergalácticos.
Em suma: foram umas horas muito bem passadas: o ambiente acolhedor que rodeou o visionamento dos filmes contribuiu, decididamente, para a sua boa recepção.

PS: Ninguém me tira da cabeça que a música que acompanha o Darth Vader (tã tã tã) foi inspirada na ópera "Força do Destino", de Verdi. Foi só juntar o rãtãtã, rãtãtã...

Vasco Granja (1925-2009)


Morreu Vasco Granja.

Tenho uma memória de um filme de animação que passou no programa da RTP (seria russo? sueco? ucraniano? finlandês?), onde aparecia uma série de seres cinzentos, grandes e robustos, numa fila indiana, à beira de um precipício. E havia um movimento repetitivo: iam dando cotoveladas uns nos outros e iam tombando, suavemente e sem protestos, naquele abismo. Não sei por que raio retive esta imagem, mas fico preocupada...


E também o vi ao vivo, nos meus tempos da infantil. Lembro-me perfeitamente que estava com tosse nesse dia e vejo-me num auditório escuro a ver desenhos animados. Seria um festival? Havia muita criançada. Tenho esta imagem gravada de o ver sentado a dar autógrafos, mas não consta que tenha algum.


Adeus, "amiguinho".


segunda-feira, 4 de maio de 2009

Onde as formigas verdes e eu sonhámos


O único filme que fui ver ao Indie Lisboa não constava da minha lista: "Where the green ants dream" (1984), de Werner Herzog, um confronto a roçar o surreal entre o homem branco e os aborígenes: uns queriam rebentar as entranhas daquela terra árida para expandirem o negócio mineiro, outros queriam preservar o lugar onde as formigas verdes sonhavam a origem do mundo. Se alguém perturbasse o sono das formigas, o mundo e os homens nele acabariam.
E lá vinham os homens civilizados a tentar comprar, civilizadamente, os aborígenes, que foram levados a tribunal, onde ninguém se entendia por serem de mundos diferentes. E na barra aparecia um aborígene a prestar testemunho numa Língua de que era o único falante. Ninguém o entendeu. Nem eu, que nesta parte do filme já me perdia no sono, a cabecear ("Et tu, Brutus?"), não por culpa do Herzog (bom, talvez um pouco), mas por ter calcorreado a Avenida da Liberdade de cravo vermelho enfiado numa bandeira amarela (teimosamente não hasteada).
Das partes que vi de olhos bem abertos, o que retive com mais prazer foram as paisagens do deserto, os montes de areia branca e os rostos rugosos dos aborígenes.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Rome, Rome will tear us apart again







Os flocos de neve. Foi isto que me deliciou no deslumbrante peplum "The Fall of the Roman Empire" (1964), de Anthony Mann. Depois foi aquela corrida de cavalos que furava a floresta e que opunha Lívio e Cómodo (um irreconhecível, de tão novo, Christopher Plummer).
Sophia Loren ia passando no ecrã, imperial. Fez uma boa performance como filha abnegada de um Marco Aurélio moribundo e mulher apaixonada : sempre que o par amoroso Lucila/Lívio surgia, apetecia cantar: "Rome, Rome will tear us apart again..."
E depois das cenas magistralmente filmadas nas geladas florestas bárbaras da última fronteira do Império Romano, fez-se luz quando nos vimos numa Roma de mármores, togas e estátuas gigantescas. Deslumbrante, o mergulho de Cómodo na piscina azulíssima do seu Sanum Per Aqua. Indescritível, a beleza do cenário do Forum e a visão de Cómodo, já imperador, sentado sob a luzidia loba romana (mas sem Rómulo e Remo agarrados às tetas).

E ao longo dos 153 minutos que durou este filme, o senhor que se sentou ao meu lado dormiu profundamente. Nem as cenas de batalha entre romanos e bárbaros, bem servidas de gritos e espadeiradas, o acordavam. Um sono de justo.





















sábado, 18 de abril de 2009

Indie Lisboa: 23 de Abril a 3 de Maio

Na agenda:

  • "Singularidades de uma rapariga loura", Manoel de Oliveira (28, Terça, 22h00, São Jorge)
  • "Winter Silence", Sonja Wyss (29,Quarta,21h15, Londres)
  • "Ricky", François Ozon (1, Sexta, 21h45, São Jorge)
  • "Johnny Cash at Folsom Prison", Bestor Cram (2, Sábado, 18h45, São Jorge)

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Man(n) of the West







"Man of the West" (1958), de Anthony Mann, é um western inquietante, que abre brechas num género luminoso e maniqueísta. Este homem, Link Jones, encarnado num imponente Gary Cooper de rosto tisnado e cheio de sulcos, é um fora-da-lei reabilitado que volta ao seu passado sanguinário quando dá de caras com o antigo bando liderado pelo seu tio e mentor, o louco varrido Dock Tobin. Para se libertar, Link terá de correr com todos a tiro.
O filme está pejado de cenas deslumbrantes, de tão tensas. Como aquela em que há um homem a sofrer numa cama que é preciso matar caridosamente, como a um cavalo. Ninguém tem estômago para o fazer ( vemos em grande plano, à vez, os rostos suados e enojados de Trout e Ponch), a não ser o desavergonhado Coaley, mas que, recatadamente, fecha a cortina vermelha que separa o assassinato do olhar dos outros. Interessante.
Mas a cena mais inquietante do filme aconteceu quando Link Jones levou para o meio daquele bando de patifes a sua bela protegida Billie Ellis. Sabíamos o que aí vinha e ela também. Coaley põe-se aos gritos, a exigir que ela se dispa à frente de todos. Para a fazer despir mais depressa, pressiona uma faca na garganta de Link, que já não lhe era indiferente. E num acto de amor vemos Ellis, decidida e quase já sem medo, a descalçar os sapatos, a obedecer e a despir as meias pretas, a ver o sangue escorrer no pescoço de Link e a desapertar o vestido. Fica-se por aqui e basta para sairmos daquela cena com os nervos em franja.
Mas Link Jones vinga-nos mais tarde na sequência em que dá uma tareia a Coaley e o despe à frente dos outros, deixando-o a chorar de raiva, em ceroulas. Ficamos consolados.
A interpretação de Lee Cobb ("Dock Tobin") também impressiona, do princípio ao fim: quando aparece em cena, saído da penumbra de um quarto, quando dá o sermão ao seu bando frouxo, gritando "no guts! no guts!", quando vemos a devoção cega que tem por Link e quando se deixa morrer, displicentemente, às suas mãos.

Este "Homem do Oeste" ficou-me debaixo da pele.




segunda-feira, 13 de abril de 2009

O filme pascal








Gosto genuinamente de encontrar todos os anos na televisão pública os mesmos filmes em Technicolor que versam a temática geral “Jesus Cristo.” É reconfortante. É nostálgico. São filmes bons: exagerados, kitsch, garridos e, invariavelmente, com um Charlton Heston bronzeado.
Nunca vi o “Ben-Hur” inteiro (filme de 1959, de William Wyler), mas tenho-o visto, aqui e ali: a cena da telha que escorrega, a corrida de quadrigas e a sequência dos leprosos. Este ano, juntei mais umas peças: a relação, digamos, alegre, entre o romano Messala e o judeu Ben-Hur, o coup de foudre entre o senhor Ben-Hur e a sua escrava Ester (que quando a vi descer as escadas já sabia o que aí vinha), a prisão injusta de um inocente Ben-Hur depois da dita queda da telha, a relação alegre que azedou, a travessia do deserto e o gesto caridoso de Jesus, que deu de beber a quem tinha sede.
E depois veio a sequência nas galeras. Êxtase. Absorvi tudo aquilo: os homens de corpos bronzeados e reluzentes a remarem ao ritmo do tambor que acelerava sob as ordens maliciosas de um romano: ritmo de aceleração, ritmo de combate, ritmo de abalroamento e sofríamos com eles, com aqueles rostos retorcidos, uns a gritar de dor, outros a cair para o lado, e o Ben-Hur, com olhos duros de ódio, bronzeado e a suar, a aguentar aquele esforço crescente. E quando repousaram, nós repousámos.
Esta foi a grande cena da Páscoa de 2009, tirando, obviamente, a do sarrabulho, que essa é só para entendidos.














segunda-feira, 30 de março de 2009

Guerra sem quartel de empresas rivais




Contávamos ir ver o filme de vampiros de Tomas Alfredson, "Let the right one in", na I Mostra Sci Fi de Cinema Fantástico, mas ao sabermos que era preciso comprar três entradas para as restantes sessões para termos acesso ao bilhete, fizémos um manguito ao Sci Fi e tentámos a sorte noutro lado.
Escolhemos "Duplicity" (Dupla Sedução), de Tony Gilroy, realizador do perturbante "Michael Clayton", que volta assim ao mundo retorcido das empresas.
O filme é uma confusão pegada pelos estonteantes flashbacks que se sucedem (ele é "five years ago", ele é "ten days earlier", ele é "eight years ago") e torna-se difícil encontrar o fio naquela meada. O que irrita. Filmes cheios de voltinhas, com saltos temporais confusos, para mim, é chão que já deu uvas. Disse para mim "jamais!" quando penei a ver o "Memento".
A engenharia de argumento de "Duplicity" não me convenceu, mas reconheço que o puzzle se resolve com uma volta surpreendente. Por isso, saímos do filme um pouco mais entretidos.
Do que gostei foi da sátira feroz ao mundo corporativo. Aqui até fica bem a música dos Mão Morta, onde o Adolfo Luxúria Canibal canta no refrão: "guerra sem quartel/de empresas rivais/na busca do controlo de mercados locais ou então... ou então... "
Ninguém escapa à fachada de sofisticação e poder que mascara a tolice e uma dose valente de falta de senso (adorei o CEO alucinado do Paul Giamatti, mimosa e coerentemente chamado "Dick").
A história de amor dos ex-agentes da CIA e do M16 que fazem jogo duplo num caso de espionagem empresarial é angustiante. A Julia Roberts estava em piloto automático (ia bem, portanto, mas sem faísca) e o Clive Owen comovia no seu papel transparente de homem apaixonado, que não engana ninguém.






quinta-feira, 26 de março de 2009

Apocalypse Now


Por razões sentimentais, tornei-me consumidora de filmes pirateados. O meu último pecadilho foi " A Valsa com Bashir", uma catarse do israelita Ari Folman sobre a guerra no Líbano no Verão de 1982.
Nunca tinha visto um documentário de animação. Vemos pessoas reais, com as suas vozes reais, com gestos, olhares e traumas reais, mas com uma camada de cor em cima. Ou antes, uma máscara de cores, que torna toda aquela história, cobardemente, um pouco mais fácil de suportar. Por isso é necessário bombardear o espectador com os gritos e as caras reais das mulheres palestinianas que choraram o holocausto nos campos de refugiados de Sabra e Chatila. Por isso é preciso mostrar os rostos desfigurados dos mortos e as crianças enterradas nos escombros sem cores a mais por cima.
As imagens valem mais que mil palavras, mas estas, do jornalista Robert Fisk, também nos calam:
"(...) Jenkins and Tveit were so overwhelmed by what we found in Chatila that at first we were unable to register our own shock. Bill Foley of AP had come with us. All he could say as he walked round was "Jesus Christ" over and over again. We might have accepted evidence of a few murders; even dozens of bodies, killed in the heat of combat. Bur there were women lying in houses with their skirts torn up to their waists and their legs wide apart, children with their throats cut, rows of young men shot in the back after being lined up at an execution wall. There were babies - blackened babies - babies because they had been slaughtered more than 24-hours earlier and their small bodies were already in a state of decomposition - tossed into rubbish heaps alongside discarded US army ration tins, Israeli army equipment and empty bottles of whiskey (...)"

terça-feira, 24 de março de 2009

Caos Calmo: um luto ou o amor de um pai pela filha


NOTÍCIAS MÉDICAS desafiou o Dr. António Coimbra de Matos, psiquiatra e psicanalista, para analisar o filme “Caos Calmo”, realizado por Antonello Grimaldi, baseado no romance homónimo do escritor italiano Sandro Veronesi, publicado em Portugal pelas Edições Asa. É a história de um luto e da sua superação, mas é principalmente uma história de amor paternal. “O pai está mais preocupado com a filha do que com ele e isso ajuda-o a fazer o luto [pela mulher]. Isso mostra a saúde mental deste homem e o seu afecto”







Pietro Paladini fica viúvo inesperadamente, no mesmo dia em que salva uma mulher desconhecida de morrer afogada no mar. Pietro tem uma filha, Claudia. Quando ela regressa à escola, o pai decide esperá-la no jardim em frente. E continuará a fazê-lo, durante meses a fio.
Para o Dr. António Coimbra de Matos, a faceta mais interessante e rica do filme “Caos Calmo” é, justamente, a preocupação deste pai pelo bem-estar da sua filha depois da trágica morte da mãe. “Está mais preocupado com a filha do que com ele e isso ajuda-o a fazer o próprio processo de luto. Isso mostra a saúde mental deste homem e o seu afecto. Mostra que não é um homem egoísta e, na medida em que está centrado noutra pessoa, o luto também se vai fazendo mais facilmente. Não está a pensar: desgraçado de mim que perdi a mulher, mas antes: o que se está a passar com a minha filha?”
Há diferenças na forma como adultos e crianças vivem o luto: “Os adultos fazem um luto mais vivido, mais pesado, mas que dura menos tempo. As crianças fazem um luto mais ligeiro, mas que dura mais tempo. As crianças vão fazendo o luto, mas não estão sempre a pensar naquilo. Elas têm dificuldade em viver os afectos negativos e, portanto, vivem-nos em intervalos curtos.”
Afirma que um dos erros que se cometem na abordagem do luto nas crianças é considerar-se que o melhor é não pensarem no assunto e resguardá-las do confronto com a morte. Pelo contrário, é preciso deixar a criança viver o luto. “A criança tem que pensar, tem de sentir a tristeza e expressar-se para elaborar o luto, senão, esse processo é bloqueado.”
“Num luto normal não se faz psicoterapia”

Os sentimentos negativos que se vivem durante um luto são tão normais como um corpo febril, reagindo à infecção. Até determinados limites, é preciso deixar a febre correr, porque ela faz parte da cura. O luto não é uma doença que precise de ser tratada, insiste. “Num luto normal não se faz psicoterapia. É um processo normal.”
Aliás, há no filme uma cena em que o marido enlutado participa numa psicoterapia de grupo, que se revelará desastrosa. O Dr. António Coimbra de Matos faz suas as conclusões de Pietro Paladini naquela ocasião: “A psicoterapia de grupo era uma idiotice e ele não estava lá a fazer nada.”
A acontecer, a intervenção do médico numa situação de luto não patológico deverá ser muito ligeira, sob o risco de se “fabricar uma doença que não existe.”
O psiquiatra e psicanalista relatou o caso de um casal que o procurou por causa do filho de seis anos que acabava de perder um primo, pouco mais velho do que ele, num acidente de automóvel. O Dr. António Coimbra de Matos conversou primeiro a sós com o menino. “Se eu tivesse ouvido primeiro os pais, provavelmente, tinha feito um diagnóstico de depressão, de psicose ou coisa parecida, uma vez que me contavam uma história alarmante...”
Sossegou os pais: o filho não precisava de nenhum tratamento, porque o que estava a sentir era um traumatismo normal, dadas as circunstâncias. “Ele tinha de pensar aquelas coisas, para ficarem bem enterradas. Quando há uma vivência traumática, temos de a elaborar para que não fiquem coisas por conhecer, que se tornam, assim, quistos de malignidade.”

O luto patológico

No entanto, há lutos doentios. No filme, uma das pessoas com quem Pietro Paladini se cruza confessa-lhe que quando a sua mulher morreu ficou subitamente com a obsessão das limpezas. Este seria um luto patológico, de tipo obsessivo.
Na sua prática clínica, o psiquiatra e psicanalista já lidou com um luto paranóide: foi o caso de uma viúva que alimentava a convicção de que o marido não cumpria a medicação prescrita para o coração por não gostar dela e, por isso, morreu.
Na leitura do Dr. António Coimbra de Matos, Pietro Paladini atravessa um luto perfeitamente normal. O título do filme, “Caos Calmo”, sugere isso mesmo: “Não é um caos agitado, desorganizado, patológico.”
O acto de esperar no jardim em frente ao colégio da filha serve de metáfora à paragem interior que o protagonista vive durante o seu processo de luto. “É uma paragem mental, que também faz parte do trabalho do luto. É um indivíduo que não investe da mesma forma na realidade por estar preso à realidade interna.”
O médico reconhece que sentiu o mesmo quando viveu o luto pelo seu pai, pouco depois de ter terminado o curso. Nessa época, recorda, “a realidade passou por mim num certo nevoeiro. Uma pessoa não regista, nem vive, com a mesma intensidade.”
Defende que o princípio do fim do luto de Pietro é o momento do seu “sonho erótico” com a mulher que salvou na praia. “O fim do luto é precisamente esse: é investir noutro objecto.”





Filipa Lourenço


Entrevista publicada no semanário NOTÍCIAS MÉDICAS nº3017, de 21 de Janeiro de 2009

domingo, 22 de março de 2009

Desejo e Literatura

"O Leitor", adaptação do livro do jurista Bernhard Schlink, é daqueles filmes que deixam o espectador satisfeito: temos uma boa história, interpretações convincentes, uma realização fluida e inteligível, que manobrou bem os frequentes saltos cronológicos. Perfeito.
A história de amor entre o miúdo de 15 anos e a mulher de 36 tem tudo para ser cativante e bela: mete sexo e literatura e está tudo dito. Lá estava "A Odisseia" de Homero, o D.H. Lawrence e "O Amante de Lady Chatterley" (um livro intenso com uma magistral adaptação ao cinema por Pascale Ferran), o Tintin (porque tinha graça) ou "A dama do cachorrinho" de Anton Tchékov, um conto glosado ao longo do filme. Perfeito.
Kate Winslet ia muito bem no papel de Hanna: uma mulher austera, brusca e de tiques autoritários (por defeito profissional), mas frágil e feminina quando se despia ou quando ouvia ler. A sua candura era desarmante, quer no tribunal que condenou o seu passado de diligente guarda de um campo de concentração, quer na prisão, quando aprende a ler e a escrever sozinha escutando as gravações que o seu "leitor" lhe enviava. Para mim, das cenas mais comoventes.
Há muitas histórias paralelas. As questões levantadas durante o julgamente de Hanna são importantes: a ferida aberta do Holocausto, a questão da obediência e aquela evidência de ninguém ser absolutamente bom ou absolutamente mau.
No entanto, é sempre mais simples e conveniente rematar as pessoas com o rótulo definitivo de "bom" ou "mau." Até Josef Mengele, o médico nazi que fez inúmeras e macabras experiências "médicas" com gémeos, era conhecido entre as crianças como o "tio Mengele", porque oferecia chocolates e era delicado com elas, isto antes de lhes picar o corpo com agulhas ou de as abrir e coser sem anestesia...
Hanna foi acusada de deixar centenas de prisioneiras a arder dentro de uma Igreja, arcando com a pena mais pesada por ter vergonha de confessar o seu analfabetismo (outro pormenor interessante na história). Pagou por isso. Como se paga por isso?
Mas não foi por aqui que o filme me agarrou. Gostei muito mais da luminosa história de amor, sustentada em desejo e literatura.
Como história de redenção não acho que haja filme, que eu conheça, que supere "As Vidas dos Outros" (2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, sobre a claustrofóbica Alemanha de Leste nos anos 80, antes da queda do Muro de Berlim. A personagem do cumpridor agente da Stasi que tem por missão ouvir a vida de um escritor (outra vez a literatura), que acaba por se afeiçoar a ele, forjando os relatórios para o proteger, é das mais emocionantes que tenho visto.