quarta-feira, 27 de maio de 2009

Ad nauseam



Gosto daquele icónico olho de pestanas esticadas e postiças no início do filme "A Clockwork Orange" (1971), de Stanley Kubrick, adaptação da novela de Anthony Burgess. Mas à medida que entramos naquele ambiente desconcertante de "ultra-violência" onde a ocupação de uma quadrilha de jovens é beber leite, violar e espancar, o incómodo instala-se e não nos larga.
Mais perturbadora é a música que acompanha toda aquela violência descabelada: Rossini, que impõe ritmo a um frenético ménage à trois; o popular "Singing in the rain", que marca uma das sequências mais atrozes do filme, e Beethoven, que se torna na paixão e no desespero do líder do grupo de rufias, Alex DeLarge, o do olho pestanudo.
Curioso o percurso de Alex, que depois de ser apanhado em flagrante delito e preso se sujeita a uma técnica experimental que o irá reabilitar de maus pensamentos. Bastará um gesto violento ou menos próprio para se nausear quase até à morte.
Se não fosse o humor e o nonsense de algumas cenas, não ia aguentar este filme perturbante, mas que até acaba bem: quando o sacrificado Alex, engessado numa cama de hospital depois de uma tentativa falhada de suicício ao som de Beethoven, acorda bem-disposto de um sonho erótico, que era suposto fazê-lo vomitar, e exclama:"I am cured all right!"


Valha-nos o sentido de humor desta "Laranja Mecânica".






Ambiguidades

Conversando com MVA, diz-me isto, através da mesa onde repousavam um queque de frutos do bosque e um café: que a obra de arte (filmes, pinturas, livros) só é estimulante se for ambígua. E diz o mesmo das pessoas. Registei.

domingo, 24 de maio de 2009

Peddy-Paper no Vaticano


Muito se corre naquele "Anjos & Demónios", o filme de Ron Howard adaptado do romance de Dan Brown sobre a suposta vingança dos "Iluminados" sobre a Igreja Católica.
Trata-se de um "peddy-paper" demoníaco nas ruas do Vaticano, com um Tom Hanks a raciocinar a 100 à hora à procura dos locais onde quatro cardeais serão marcados e executados como forma de vingar "a purga" a que foram sujeitos os "Illuminati", homens de ciência que enfrentaram o conservadorismo da Igreja.
Pelo meio há uma ameaça sui generis: o Vaticano será destruído com anti-matéria roubada de um laboratório secreto no CERN (Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire) e que estava a ser investigada como fonte de energia alternativa (não pode: "If we could assemble all the antimatter we've ever made at CERN and annihilate it with matter, we would have only enough energy to light a single electric light bulb for a few minutes", informa o CERN).
Apesar do simplismo, como não podia deixar de ser, gostei de ver a física de partículas metida nesta história. Era inevitável, com a plasticidade metafórica de que goza "a partícula de Deus", o bosão do sr. Higgs. E lá estava, engenhoso, o confronto entre Deus e a Ciência (e cito, porque gosto, Gonçalo M. Tavares, quando diz: "(...) A única forma de prova definitiva em ciência seria efeito da existência de uma máquina de Deus. Máquina de dividir em dois (em Verdadeiras e Falsas) as proposições do Mundo (linguagem que os homens colocam sobre a terra.)"
O filme tem ritmo (talvez até demais), bons efeitos especiais e a história não nos deixa adormecer, mas fina-se naquela estratégia estafada de os bons do início serem os maus no fim. "Anjos & Demónios" entretém, mas não convence nem deslumbra.



quinta-feira, 21 de maio de 2009

Play it again, Johnny Guitar

Apagou-se uma vela na Cinemateca Portuguesa.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

"Being alive is so damn sweet"


"Watchmen", a BD dos anos 80 de Allan Moore/Dave Gibbons/John Higgins, agarrou-me desde os primeiros quadradinhos pela mestria com que dava a ver a história: como o pequeno pormenor dava lugar, num quadrado mais à frente, a uma cena ampla; como se passava, com suavidade, de uma cena do presente para um vislumbre do passado só de olhar para uma fotografia antiga; como a mesma cena era vista sob várias perspectivas e que gozo isto me dava.
É um livro negro, cheio de pancadaria e sangue, com heróis demasiado humanos e por isso ridículos nas suas fatiotas. Estão cheios de traumas, de dores, de pecados e insatisfações.
The Comedian, um peão na trama, que paira no livro como um fantasma; Doctor Manhattan, o freak de serviço, que reaprendeu a humanidade em Marte nesta tirada deslumbrante: "...but the world is so full of people, so crowded with these miracles that they become commonplace and we forget...I forget..."; The Nite Owl, o ornitólogo sensível; a frágil Laurie/The Silk Spectre; Rorschach, de cara e passado borrados, que força o bonacheirão Dr. Malcolm Long a fitar o abismo e a fazer-se mais humano e Adrian Veidt/Ozymandias, o Alexandre o Grande reencarnado que impede uma iminente guerra nuclear ao simular uma invasão extraterrestre. Sacrificou metade da população de Nova Iorque, mas conseguiu a paz no mundo...até que se descubra a fraude (estará o "New Frontiersman" à altura?)
"Watchmen" é uma BD dura, mas rica de recursos: o livro está polvilhado de textos/anexos que contam histórias paralelas e que alargam o mundo daquela história metida em quadradinhos, com pedaços de prosa, recortes de jornal, fait-divers, bandas desenhadas dentro de bandas desenhadas; depois há ecos de músicas (Bob Dylan, John Cale), tiradas de Einstein, William Blake ou Nietzsche, que aprofundam o drama.
Naquele mundo caótico, violento e no fio da navalha, que também é o nosso, havia sempre quem lembrasse como era bom estar vivo e poder abraçar alguém: "Oh, it's sweet. Being alive is so damn sweet."

terça-feira, 12 de maio de 2009

"A Zona" é um lugar estranho

Com mente aberta. Foi assim que me recostei no banco guinchante do Cinema Londres para ver "A Zona", de Sandro Aguilar. Expectativas, havia algumas. Tinha lido umas linhas sobre o filme, onde se dizia que era preciso olhar para aquele ecrã como quem vai a uma galeria de arte, porque cada plano era "emoldurável", que é uma expressão bonita.
Com mente aberta e algumas expectativas contemplei este objecto, ou antes, primeiro ouvi. O filme é todo ruídos: carros, comboios, conversas em corredores de hospital, choro de bebés, suspiros e muitos silêncios. E tudo coberto por uma névoa de tons azuis (que eu já tinha visto no poderoso filme que é "Alice"), caras desfocadas, zooms incríveis que captam cada poro da pele e cada pêlo da barba de um homem ou um olho pestanudo e esbugalhado que parecia saído do filme "Un Chien Andalou" de Buñuel e tem graça porque nesta "Zona" há muitos cães, doentes e um sem olho.
Contemplei estes quadros pintados pelo realizador e pensava se não estaria perante o embuste do artista que quer fazer bonito e foi sempre assim, entre desconfiada e deslumbrada, que olhava para cenas como aquela em que se vê um prematuro a chorar, de mansinho, na sua incubadora. Pensei logo que aquilo era batota, porque é fácil ser "artista" quando se tem à frente um prematuro frágil e desdentado, a mover os dedinhos e a boquinha. É demasiado fácil. E, no entanto, mexe connosco. E que dizer daquela cena em que umas mãos enluvadas lavam o corpo de um homem em coma? É só isto, mas é uma cena hipnótica pelos sons e pelos gestos daquelas mãos eficientes. E o filme joga-se assim, em planos lentos, cheios de ruídos, banais, mas que me puseram, num par de cenas, num alvoroço de pele de galinha e isso é alguma coisa.
Ali há histórias, mas são-nos dadas aos pedacinhos, toma lá mais uma e amanha-te, e nós vamos tentando dar um sentido àquelas personagens que só olham no vazio, fumam cigarros, arrastam-se por casas, bebem cafés, choram, andam de mota e morrem e que mal se ouvem falar. Mas há histórias e é assim que eu as conto para mim: há este Rui de olhos tristes que tem o pai em coma, que deambula pela casa da sua infância, que experimenta fatos velhos, olha para fotografias, abandona um cão e lembra-se daquele dia em que o seu pai abandonou a sua mãe e fugiu com ele para um lado qualquer. Há esta Leonor, que perde o marido num desastre e tem um filho prematuramente. O Rui e a Leonor, que se conhecem de uma tresloucada festa de Natal do escritório, reencontram-se no hospital, já pisados pela vida, e vão juntos numa mota pela estrada fora até morrerem os dois num desastre. Há uma história mais enigmática pelo meio. O homem que vive numa barraca com a mulher grávida, rodeado de cães e que uma noite, deambulando na floresta, cai redondo no chão, com sangue a escorrer da boca, talvez envenenado pela mulher.
E nas cenas finais pregam-nos à frente uma moldura com umas árvores abanadas pelo vento e só me vem à cabeça aquela cena do "Family Guy" em que o Peter Griffin, de câmara de vídeo em punho, se extasia com a visão de um saco de plástico a esvoaçar ao vento (seria "Beleza Americana"?) e nisto vemos Deus na sua nuvem a arengar: "É apenas um saco do lixo a voar!" E no entanto...
"A Zona" é um lugar estranho, mas gostei de lá estar.

domingo, 10 de maio de 2009

Os bons rebeldes

J.J. Abrams tinha a missão de rejuvenescer as personagens da série criada por Gene Roddenberry e fazer estourar um blockbuster. Cumpriu em pleno neste "Star Trek" teenager cheio de graça que nos mostra como nascem as amizades que interessam e como se fazem heróis a partir de um punhado de bons rebeldes.
Fabulosa a cena do pré-adolescente James Tiberius Kirk, órfão de pai, a conduzir no século XXIII um carro vintage do século XX, enquanto curte uns velhinhos Beastie Boys. Quando se aproxima de um precipício, acelera, faz um drift e salta do carro. Salva-se por um triz, agarrado à borda do abismo e esta será uma cena recorrente no filme, ver o Kirk por um fio. Em paralelo, vemos o jovem Spock a rebelar-se contra a lógica fria dos vulcanos e a mostrar as emoções que lhe vêm dos genes humanos da mãe quando sova o bully da escola.
O conflito interior de Spock, dividido entre a razão e a emoção, foi para mim um dos ingredientes mais interessantes do filme. Um argumento engenhoso colocou o velho Spock (Leonard Nimoy) ao lado do novo (Zachary Quinto) e foi comovente ver esse velho sábio e despretensioso a dar conselhos a um jovem "eu" ainda duro e relutante em aceitar a sua humanidade.
O filme é pura diversão do princípio ao fim. Vi-o com um contínuo esgar sorridente: temos sequências em que parece um típico filme de "high school" americano, cenas primorosas de acção e um vilão que destrói planetas por vingança, porque lhe roubaram o amor. No fundo, no fundo, todo o filme está sob a influência do amor. E isso é bom e é isso que encanta.

PS: Não sou "trekkie" e por isso perdi, provavelmente, muitos pormenores só acessíveis aos iniciados. No entanto, identifiquei a "heresia" no xadrez amoroso da Enterprise...




















quinta-feira, 7 de maio de 2009

Espero bem que sim...

"Há no cinema e em todas as artes uma função terapêutica. A arte melhora os indivíduos. Faz-nos sonhar, faz-nos manter a esperança, faz-nos mais humanos, mais solidários, mais activos e melhores cidadãos."
António Roma Torres, Psiquiatra e Cinéfilo, em entrevista ao NOTÍCIAS MÉDICAS (nº3031, de 6.5.09)

terça-feira, 5 de maio de 2009

A long time ago, in a galaxy far far away...


Fui alfabetizada no universo da primeira saga "Star Wars", que eu só conhecia aos bocados. Aquilo tem mesmo ressonâncias épicas: começa in media res, a palavra "destino" é dita vezes sem conta e há um filho que é levado ao pai que não conhece pela força do destino e que lhe salva a última réstia de humanidade que guarda no corpo de velho andróide rendido ao lado negro da Força.
Tiro o chapéu aos efeitos especiais (as naves espaciais, a Estrela da Morte, os sabres de luz e o zummzumm que faziam, o Yoda, o Jabba The Hutt, o R2-D2 que levava dentro um anão ou os olhos de tarântula do Darth Vader). Gostei da farda dos soldados imperiais, que quando tiravam a máscara pareciam todos saídos de um pub inglês ou de uma vacaria escocesa. Gostei dos cenários (o deserto árido no Epidódio IV, o deserto gelado no Episódio V e a floresta de sequóias no Episódio VI), mas o George Lucas carregou demais na bonecada: parecia os Marretas intergalácticos.
Em suma: foram umas horas muito bem passadas: o ambiente acolhedor que rodeou o visionamento dos filmes contribuiu, decididamente, para a sua boa recepção.

PS: Ninguém me tira da cabeça que a música que acompanha o Darth Vader (tã tã tã) foi inspirada na ópera "Força do Destino", de Verdi. Foi só juntar o rãtãtã, rãtãtã...

Vasco Granja (1925-2009)


Morreu Vasco Granja.

Tenho uma memória de um filme de animação que passou no programa da RTP (seria russo? sueco? ucraniano? finlandês?), onde aparecia uma série de seres cinzentos, grandes e robustos, numa fila indiana, à beira de um precipício. E havia um movimento repetitivo: iam dando cotoveladas uns nos outros e iam tombando, suavemente e sem protestos, naquele abismo. Não sei por que raio retive esta imagem, mas fico preocupada...


E também o vi ao vivo, nos meus tempos da infantil. Lembro-me perfeitamente que estava com tosse nesse dia e vejo-me num auditório escuro a ver desenhos animados. Seria um festival? Havia muita criançada. Tenho esta imagem gravada de o ver sentado a dar autógrafos, mas não consta que tenha algum.


Adeus, "amiguinho".


segunda-feira, 4 de maio de 2009

Onde as formigas verdes e eu sonhámos


O único filme que fui ver ao Indie Lisboa não constava da minha lista: "Where the green ants dream" (1984), de Werner Herzog, um confronto a roçar o surreal entre o homem branco e os aborígenes: uns queriam rebentar as entranhas daquela terra árida para expandirem o negócio mineiro, outros queriam preservar o lugar onde as formigas verdes sonhavam a origem do mundo. Se alguém perturbasse o sono das formigas, o mundo e os homens nele acabariam.
E lá vinham os homens civilizados a tentar comprar, civilizadamente, os aborígenes, que foram levados a tribunal, onde ninguém se entendia por serem de mundos diferentes. E na barra aparecia um aborígene a prestar testemunho numa Língua de que era o único falante. Ninguém o entendeu. Nem eu, que nesta parte do filme já me perdia no sono, a cabecear ("Et tu, Brutus?"), não por culpa do Herzog (bom, talvez um pouco), mas por ter calcorreado a Avenida da Liberdade de cravo vermelho enfiado numa bandeira amarela (teimosamente não hasteada).
Das partes que vi de olhos bem abertos, o que retive com mais prazer foram as paisagens do deserto, os montes de areia branca e os rostos rugosos dos aborígenes.