Com mente aberta. Foi assim que me recostei no banco guinchante do Cinema Londres para ver "A Zona", de Sandro Aguilar. Expectativas, havia algumas. Tinha lido umas linhas sobre o filme, onde se dizia que era preciso olhar para aquele ecrã como quem vai a uma galeria de arte, porque cada plano era "emoldurável", que é uma expressão bonita.
Com mente aberta e algumas expectativas contemplei este objecto, ou antes, primeiro ouvi. O filme é todo ruídos: carros, comboios, conversas em corredores de hospital, choro de bebés, suspiros e muitos silêncios. E tudo coberto por uma névoa de tons azuis (que eu já tinha visto no poderoso filme que é "Alice"), caras desfocadas, zooms incríveis que captam cada poro da pele e cada pêlo da barba de um homem ou um olho pestanudo e esbugalhado que parecia saído do filme "Un Chien Andalou" de Buñuel e tem graça porque nesta "Zona" há muitos cães, doentes e um sem olho.
Contemplei estes quadros pintados pelo realizador e pensava se não estaria perante o embuste do artista que quer fazer bonito e foi sempre assim, entre desconfiada e deslumbrada, que olhava para cenas como aquela em que se vê um prematuro a chorar, de mansinho, na sua incubadora. Pensei logo que aquilo era batota, porque é fácil ser "artista" quando se tem à frente um prematuro frágil e desdentado, a mover os dedinhos e a boquinha. É demasiado fácil. E, no entanto, mexe connosco. E que dizer daquela cena em que umas mãos enluvadas lavam o corpo de um homem em coma? É só isto, mas é uma cena hipnótica pelos sons e pelos gestos daquelas mãos eficientes. E o filme joga-se assim, em planos lentos, cheios de ruídos, banais, mas que me puseram, num par de cenas, num alvoroço de pele de galinha e isso é alguma coisa.
Ali há histórias, mas são-nos dadas aos pedacinhos, toma lá mais uma e amanha-te, e nós vamos tentando dar um sentido àquelas personagens que só olham no vazio, fumam cigarros, arrastam-se por casas, bebem cafés, choram, andam de mota e morrem e que mal se ouvem falar. Mas há histórias e é assim que eu as conto para mim: há este Rui de olhos tristes que tem o pai em coma, que deambula pela casa da sua infância, que experimenta fatos velhos, olha para fotografias, abandona um cão e lembra-se daquele dia em que o seu pai abandonou a sua mãe e fugiu com ele para um lado qualquer. Há esta Leonor, que perde o marido num desastre e tem um filho prematuramente. O Rui e a Leonor, que se conhecem de uma tresloucada festa de Natal do escritório, reencontram-se no hospital, já pisados pela vida, e vão juntos numa mota pela estrada fora até morrerem os dois num desastre. Há uma história mais enigmática pelo meio. O homem que vive numa barraca com a mulher grávida, rodeado de cães e que uma noite, deambulando na floresta, cai redondo no chão, com sangue a escorrer da boca, talvez envenenado pela mulher.
E nas cenas finais pregam-nos à frente uma moldura com umas árvores abanadas pelo vento e só me vem à cabeça aquela cena do "Family Guy" em que o Peter Griffin, de câmara de vídeo em punho, se extasia com a visão de um saco de plástico a esvoaçar ao vento (seria "Beleza Americana"?) e nisto vemos Deus na sua nuvem a arengar: "É apenas um saco do lixo a voar!" E no entanto...
"A Zona" é um lugar estranho, mas gostei de lá estar.