segunda-feira, 30 de março de 2009

Guerra sem quartel de empresas rivais




Contávamos ir ver o filme de vampiros de Tomas Alfredson, "Let the right one in", na I Mostra Sci Fi de Cinema Fantástico, mas ao sabermos que era preciso comprar três entradas para as restantes sessões para termos acesso ao bilhete, fizémos um manguito ao Sci Fi e tentámos a sorte noutro lado.
Escolhemos "Duplicity" (Dupla Sedução), de Tony Gilroy, realizador do perturbante "Michael Clayton", que volta assim ao mundo retorcido das empresas.
O filme é uma confusão pegada pelos estonteantes flashbacks que se sucedem (ele é "five years ago", ele é "ten days earlier", ele é "eight years ago") e torna-se difícil encontrar o fio naquela meada. O que irrita. Filmes cheios de voltinhas, com saltos temporais confusos, para mim, é chão que já deu uvas. Disse para mim "jamais!" quando penei a ver o "Memento".
A engenharia de argumento de "Duplicity" não me convenceu, mas reconheço que o puzzle se resolve com uma volta surpreendente. Por isso, saímos do filme um pouco mais entretidos.
Do que gostei foi da sátira feroz ao mundo corporativo. Aqui até fica bem a música dos Mão Morta, onde o Adolfo Luxúria Canibal canta no refrão: "guerra sem quartel/de empresas rivais/na busca do controlo de mercados locais ou então... ou então... "
Ninguém escapa à fachada de sofisticação e poder que mascara a tolice e uma dose valente de falta de senso (adorei o CEO alucinado do Paul Giamatti, mimosa e coerentemente chamado "Dick").
A história de amor dos ex-agentes da CIA e do M16 que fazem jogo duplo num caso de espionagem empresarial é angustiante. A Julia Roberts estava em piloto automático (ia bem, portanto, mas sem faísca) e o Clive Owen comovia no seu papel transparente de homem apaixonado, que não engana ninguém.






quinta-feira, 26 de março de 2009

Apocalypse Now


Por razões sentimentais, tornei-me consumidora de filmes pirateados. O meu último pecadilho foi " A Valsa com Bashir", uma catarse do israelita Ari Folman sobre a guerra no Líbano no Verão de 1982.
Nunca tinha visto um documentário de animação. Vemos pessoas reais, com as suas vozes reais, com gestos, olhares e traumas reais, mas com uma camada de cor em cima. Ou antes, uma máscara de cores, que torna toda aquela história, cobardemente, um pouco mais fácil de suportar. Por isso é necessário bombardear o espectador com os gritos e as caras reais das mulheres palestinianas que choraram o holocausto nos campos de refugiados de Sabra e Chatila. Por isso é preciso mostrar os rostos desfigurados dos mortos e as crianças enterradas nos escombros sem cores a mais por cima.
As imagens valem mais que mil palavras, mas estas, do jornalista Robert Fisk, também nos calam:
"(...) Jenkins and Tveit were so overwhelmed by what we found in Chatila that at first we were unable to register our own shock. Bill Foley of AP had come with us. All he could say as he walked round was "Jesus Christ" over and over again. We might have accepted evidence of a few murders; even dozens of bodies, killed in the heat of combat. Bur there were women lying in houses with their skirts torn up to their waists and their legs wide apart, children with their throats cut, rows of young men shot in the back after being lined up at an execution wall. There were babies - blackened babies - babies because they had been slaughtered more than 24-hours earlier and their small bodies were already in a state of decomposition - tossed into rubbish heaps alongside discarded US army ration tins, Israeli army equipment and empty bottles of whiskey (...)"

terça-feira, 24 de março de 2009

Caos Calmo: um luto ou o amor de um pai pela filha


NOTÍCIAS MÉDICAS desafiou o Dr. António Coimbra de Matos, psiquiatra e psicanalista, para analisar o filme “Caos Calmo”, realizado por Antonello Grimaldi, baseado no romance homónimo do escritor italiano Sandro Veronesi, publicado em Portugal pelas Edições Asa. É a história de um luto e da sua superação, mas é principalmente uma história de amor paternal. “O pai está mais preocupado com a filha do que com ele e isso ajuda-o a fazer o luto [pela mulher]. Isso mostra a saúde mental deste homem e o seu afecto”







Pietro Paladini fica viúvo inesperadamente, no mesmo dia em que salva uma mulher desconhecida de morrer afogada no mar. Pietro tem uma filha, Claudia. Quando ela regressa à escola, o pai decide esperá-la no jardim em frente. E continuará a fazê-lo, durante meses a fio.
Para o Dr. António Coimbra de Matos, a faceta mais interessante e rica do filme “Caos Calmo” é, justamente, a preocupação deste pai pelo bem-estar da sua filha depois da trágica morte da mãe. “Está mais preocupado com a filha do que com ele e isso ajuda-o a fazer o próprio processo de luto. Isso mostra a saúde mental deste homem e o seu afecto. Mostra que não é um homem egoísta e, na medida em que está centrado noutra pessoa, o luto também se vai fazendo mais facilmente. Não está a pensar: desgraçado de mim que perdi a mulher, mas antes: o que se está a passar com a minha filha?”
Há diferenças na forma como adultos e crianças vivem o luto: “Os adultos fazem um luto mais vivido, mais pesado, mas que dura menos tempo. As crianças fazem um luto mais ligeiro, mas que dura mais tempo. As crianças vão fazendo o luto, mas não estão sempre a pensar naquilo. Elas têm dificuldade em viver os afectos negativos e, portanto, vivem-nos em intervalos curtos.”
Afirma que um dos erros que se cometem na abordagem do luto nas crianças é considerar-se que o melhor é não pensarem no assunto e resguardá-las do confronto com a morte. Pelo contrário, é preciso deixar a criança viver o luto. “A criança tem que pensar, tem de sentir a tristeza e expressar-se para elaborar o luto, senão, esse processo é bloqueado.”
“Num luto normal não se faz psicoterapia”

Os sentimentos negativos que se vivem durante um luto são tão normais como um corpo febril, reagindo à infecção. Até determinados limites, é preciso deixar a febre correr, porque ela faz parte da cura. O luto não é uma doença que precise de ser tratada, insiste. “Num luto normal não se faz psicoterapia. É um processo normal.”
Aliás, há no filme uma cena em que o marido enlutado participa numa psicoterapia de grupo, que se revelará desastrosa. O Dr. António Coimbra de Matos faz suas as conclusões de Pietro Paladini naquela ocasião: “A psicoterapia de grupo era uma idiotice e ele não estava lá a fazer nada.”
A acontecer, a intervenção do médico numa situação de luto não patológico deverá ser muito ligeira, sob o risco de se “fabricar uma doença que não existe.”
O psiquiatra e psicanalista relatou o caso de um casal que o procurou por causa do filho de seis anos que acabava de perder um primo, pouco mais velho do que ele, num acidente de automóvel. O Dr. António Coimbra de Matos conversou primeiro a sós com o menino. “Se eu tivesse ouvido primeiro os pais, provavelmente, tinha feito um diagnóstico de depressão, de psicose ou coisa parecida, uma vez que me contavam uma história alarmante...”
Sossegou os pais: o filho não precisava de nenhum tratamento, porque o que estava a sentir era um traumatismo normal, dadas as circunstâncias. “Ele tinha de pensar aquelas coisas, para ficarem bem enterradas. Quando há uma vivência traumática, temos de a elaborar para que não fiquem coisas por conhecer, que se tornam, assim, quistos de malignidade.”

O luto patológico

No entanto, há lutos doentios. No filme, uma das pessoas com quem Pietro Paladini se cruza confessa-lhe que quando a sua mulher morreu ficou subitamente com a obsessão das limpezas. Este seria um luto patológico, de tipo obsessivo.
Na sua prática clínica, o psiquiatra e psicanalista já lidou com um luto paranóide: foi o caso de uma viúva que alimentava a convicção de que o marido não cumpria a medicação prescrita para o coração por não gostar dela e, por isso, morreu.
Na leitura do Dr. António Coimbra de Matos, Pietro Paladini atravessa um luto perfeitamente normal. O título do filme, “Caos Calmo”, sugere isso mesmo: “Não é um caos agitado, desorganizado, patológico.”
O acto de esperar no jardim em frente ao colégio da filha serve de metáfora à paragem interior que o protagonista vive durante o seu processo de luto. “É uma paragem mental, que também faz parte do trabalho do luto. É um indivíduo que não investe da mesma forma na realidade por estar preso à realidade interna.”
O médico reconhece que sentiu o mesmo quando viveu o luto pelo seu pai, pouco depois de ter terminado o curso. Nessa época, recorda, “a realidade passou por mim num certo nevoeiro. Uma pessoa não regista, nem vive, com a mesma intensidade.”
Defende que o princípio do fim do luto de Pietro é o momento do seu “sonho erótico” com a mulher que salvou na praia. “O fim do luto é precisamente esse: é investir noutro objecto.”





Filipa Lourenço


Entrevista publicada no semanário NOTÍCIAS MÉDICAS nº3017, de 21 de Janeiro de 2009

domingo, 22 de março de 2009

Desejo e Literatura

"O Leitor", adaptação do livro do jurista Bernhard Schlink, é daqueles filmes que deixam o espectador satisfeito: temos uma boa história, interpretações convincentes, uma realização fluida e inteligível, que manobrou bem os frequentes saltos cronológicos. Perfeito.
A história de amor entre o miúdo de 15 anos e a mulher de 36 tem tudo para ser cativante e bela: mete sexo e literatura e está tudo dito. Lá estava "A Odisseia" de Homero, o D.H. Lawrence e "O Amante de Lady Chatterley" (um livro intenso com uma magistral adaptação ao cinema por Pascale Ferran), o Tintin (porque tinha graça) ou "A dama do cachorrinho" de Anton Tchékov, um conto glosado ao longo do filme. Perfeito.
Kate Winslet ia muito bem no papel de Hanna: uma mulher austera, brusca e de tiques autoritários (por defeito profissional), mas frágil e feminina quando se despia ou quando ouvia ler. A sua candura era desarmante, quer no tribunal que condenou o seu passado de diligente guarda de um campo de concentração, quer na prisão, quando aprende a ler e a escrever sozinha escutando as gravações que o seu "leitor" lhe enviava. Para mim, das cenas mais comoventes.
Há muitas histórias paralelas. As questões levantadas durante o julgamente de Hanna são importantes: a ferida aberta do Holocausto, a questão da obediência e aquela evidência de ninguém ser absolutamente bom ou absolutamente mau.
No entanto, é sempre mais simples e conveniente rematar as pessoas com o rótulo definitivo de "bom" ou "mau." Até Josef Mengele, o médico nazi que fez inúmeras e macabras experiências "médicas" com gémeos, era conhecido entre as crianças como o "tio Mengele", porque oferecia chocolates e era delicado com elas, isto antes de lhes picar o corpo com agulhas ou de as abrir e coser sem anestesia...
Hanna foi acusada de deixar centenas de prisioneiras a arder dentro de uma Igreja, arcando com a pena mais pesada por ter vergonha de confessar o seu analfabetismo (outro pormenor interessante na história). Pagou por isso. Como se paga por isso?
Mas não foi por aqui que o filme me agarrou. Gostei muito mais da luminosa história de amor, sustentada em desejo e literatura.
Como história de redenção não acho que haja filme, que eu conheça, que supere "As Vidas dos Outros" (2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, sobre a claustrofóbica Alemanha de Leste nos anos 80, antes da queda do Muro de Berlim. A personagem do cumpridor agente da Stasi que tem por missão ouvir a vida de um escritor (outra vez a literatura), que acaba por se afeiçoar a ele, forjando os relatórios para o proteger, é das mais emocionantes que tenho visto.





quinta-feira, 19 de março de 2009

A Morte vestiu-se de vermelho


O ano de 1809 foi de boa colheita: Charles Darwin, Abraham Lincoln, Edgar Allan Poe (e muito boa gente) nasceram nesse ano.
A Cinemateca associou-se ao Colóquio "Poe e a Criatividade Gótica", que o Centro de Estudos Anglísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa organiza até amanhã para assinalar o bicentenário do nascimento do escritor norte-americano.
Ontem passou "The Masque of the Red Death" (1964), de Roger Corman, o homem que escreveu uma autobiografia intitulada "How I made a hundred movies in Hollywood and never lost a dime" (não está mal como carta de recomendação) e que é alcunhado como o rei dos filmes série-B.
"Talvez a obra-prima de Corman..." lia-se na sinopse da Cinemateca e esfreguei logo as mãos: "Obras-primas? Venham elas!" Mas se aquilo era uma obra-prima, vou ali e já venho.
Não me entusiasmei com a história do satânico e medieval Príncipe Próspero, que acaba a estrebuchar vítima da Morte Vermelha quando esta irrompe no baile de máscaras do Príncipe, imaginativamente disfarçado de Lawrence da Arábia (sim, também estranhei.)
O filme chega a ser comovente de tão naif e é talvez por aí que nos desarma.
A cópia não era das melhores: estava cheia de riscos e de saltos e "as cores fortes" que todos gabavam, infelizmente, não se notavam bem.
Mas houve momentos que me prenderam ao ecrã, como a sequência do pesadelo de Juliana, cheio de distorções e cores estranhas. A música que acompanhava o sonho soou-me aos terríficos e fascinantes "tun-tuns" dos Augúrios da "Sagração da Primavera" de Igor Stravinsky. Isso surpreendeu-me. Registei e gostei.
Agora a Morte. O próprio Roger Corman reconhecia que a sua Morte Vermelha era muito semelhante à de Ingmar Bergman no filme "O Sétimo Selo". As semelhanças são flagrantes, mas se a morte a preto e branco de Bergman gostava de jogar xadrez com cavaleiros medievais, a de Corman preferia mostrar cartas de tarot a aldeões.
Isso leva-me ao Woody Allen e à sua peça "A morte chama". A morte do Woody Allen chega a casa de um tal Nat Ackerman e diz que o vai levar para o Outro Mundo.

["A Morte: Estamos no Carnaval? Nat: Não. A Morte: Então eu sou a Morte. E agora pode-me arranjar um copo de água - ou uma água tónica?"]
Nat Ackerman diz que viu num filme que a Morte jogava xadrez, ao que a morte responde: "Não podia ser eu, porque não jogo xadrez. Só se fosse gin rummy." Dito e feito, Nat lança as cartas: se perder o jogo, morre, se ganhar, fica com mais umas horas de vida. Moral da história: a morte é "depenada" e fica a dever 28 dólares a Nat.
Uma nota: antes do filme houve uma sessão de "blá-blá". Quem falou foi o meu antigo professor de Literatura e Cinema, MJT. Nem o reconhecia, de tão mudado que está: mais magro e com menos cabelo, mas a voz estava igual. Gostei de voltar a ver o queixo dele levemente levantado, enquanto esperava que as pessoas se sentassem, com um sorriso de esguelha a acompanhar. O que eu gostei daquelas aulas...










terça-feira, 17 de março de 2009

Ler para ver?


"Olá.
Acabei de ver o Watchmen e posso dizer-te que é um excelente filme. Claro que tens de estar atenta ao universo onde tudo aquilo se passa, daí a leitura do livro ser importante, mas a essência está lá toda. Considerar aquilo um mau filme é considerar que os filmes do Senhor dos Anéis são maus."


O comentário é do meu amigo Rui, que me vai emprestar a colossal obra de Alan Moore/Dave Gibbons. Ainda não vi o filme (só o trailer) . As impressões que tenho ouvido são díspares: há quem ponha o filme nos píncaros e há quem o deite abaixo sem misericórdia, declarando-o um pastel narrativo. Num ponto parece haver consenso: em termos visuais o filme impressiona.


A ver vamos.

sábado, 14 de março de 2009

"Gran Clint"





"Gran Torino", o novo filme realizado por Clint Eastwood, leva-nos às lágrimas.
A história é forte e surpreendente. É sobre "vida e morte", o leitmotiv que surge nas primeiras cenas, com o enterro da mulher de Walt Kowalski, um assombrado veterano da guerra da Coreia, e com a celebração do nascimento de uma criança Hmong na casa ao lado.
Clint Eastwood é um figurão: a composição da personagem do irascível e chauvinista Kowalsky é fabulosa, com os seus inúmeros esgares e resmungos, e nunca é desagradável: a sua relação com a cadela Daisy é comovente e faz-nos rir pela maneira como enche o seu barbeiro de "mimos", num delicioso arraial de insultos.
Passamos a superfície e descobrimos um Walt terno, o pai que nunca foi, à medida que a sua amizade com o cabisbaixo Thao se sedimenta. Entretanto, ambos se salvam um ao outro, com o "sweet" Ford Gran Torino de 1972, o ícone do filme, em fundo.
Como sempre, Clint Eastwood faz um trabalho de realização impecável. Gostei especialmente das cenas paralelas das duas confissões: a que Walt fez diante do padre, três pecados menores sussurados através das grades do confessionário, e a grande confissão que os ouvidos de Thao ouviram, com uma outra grade a separá-los.
Walt repugna-se com a religião e com a Igreja, mas na cena final, baleado e caído no chão, pareceu-me um Cristo na cruz e, de facto, também ele deu a vida por alguém.






quinta-feira, 12 de março de 2009

Na Monstra com Plympton





Fui ontem à Monstra-Festival de Animação de Lisboa ver "Idiots and Angels", de Bill Plympton, que recebeu o Grande Prémio no Fantasporto deste ano. Eis o que nos diz a sinopse: “Idiots and Angels” is a dark comedy about a man’s battle for his soul." Também fico a saber que o homem mau que começa com esgares de fúria na cama no início do filme e que termina, também na cama, em beatífico "sexual healing", se chama Angel. Resumindo: um dia acorda com asas que ele não quer. Pior, quando quer fazer mal aos outros, as asas de anjo trocam-lhe as voltas e não tem outro remédio do que ser bonzinho. À sua volta pululam homens maus que lhe querem roubar as asas. Entretanto, apaixona-se nas nuvens, morre e renasce, de corpo e alma e, voltando à sinopse, "finally, Angel and the blonde end up in bed, and the wings detach themselves and fly away, to rescue some other misguided soul."

A história é cativante, mas gostei mais de me deleitar no traço do animador. Não conhecia o de Bill Plympton e agradou-me muito, sobretudo os carros bojudos, que apetecia agarrar ou o fumo (o que saía do escape dos automóveis ou da boca dos fumadores), quase sólido, e gostei da forma engenhosa como ligava os planos: a água que escorria da torneira da casa-de-banho transformava-se no leite que Angel deitava nos cereais do pequeno-almoço. Gostei do humor negro do filme e das suas pitadas de erotismo. A propósito, aquela primeira cena do despertador é fantástica.
Foi uma noite animada.




domingo, 8 de março de 2009

Cinema



Não me lembro do primeiro filme que vi no cinema. Esfarelando a memória, o meu palpite é a "Branca de Neve e os Sete Anões" (1938), do Walt Disney, na sala do cinema Tropical. A beleza demoníaca da Rainha e a fealdade da velha de maçã vermelha na mão pontiaguda arrepiaram-me. São apenas memórias ténues. Penso que nunca saberei essa minha primeira vez.
Nem me lembro tão-pouco de quando comecei a frequentar a Cinemateca, primeiro no nº39 da Rua Barata Salgueiro, com salas sufocantes e bancos envelhecidos, depois, durante a renovação do edifício, no local original, o belíssimo Palácio Foz, para voltar, maravilhada, ao nº39. As minhas idas à Cinemateca foram, na maior parte das vezes, solitárias. Nunca me importei, porque nunca me senti sozinha naquela sala de cinema. Era o grande cinema.
O "Johnny Guitar" (1954), de Nicholas Ray, continua a provocar-me palpitações: é aquela cor hipnótica, os diálogos certeiros, tão bem escritos, é a chávena de motivos azuis que o cowboy da guitarra pega com tanta delicadeza, são os olhos da Joan Crawford e da sua Vienna tão forte quando veste calças e pega em armas e tão frágil quando põe o vestido branco.
Lembro "Un grand amour de Beethoven" (1936), de Abel Gance, e a cena de Therèse olhando para um grande carvalho, suspirando o nome: "Beethoven." Lembro-me do baque que senti ao ver "The Misfits" (1961), de John Huston: a dor verdadeira que saía dos actores, sobretudo de Marylin Monroe, e os planos de uma extraordinária beleza triste onde Clark Gable abre caça aos cavalos mustang. Os filmes de Douglas Sirk fascinam-me pelas cores fortes e pelo kitsch do "american way". Admiro a cena do torneio do "Lancelot du Lac" (1974), de Robert Bresson, onde só ouvimos e vemos patas de cavalos. Fiquei 262 minutos, fascinada, a ver e a ouvir o "Amor de Perdição" (1978), de Manoel de Oliveira; ri até às lágrimas na cena do estacionamento de "Mon oncle" (1958), de Jacques Tati; arrepiei-me com a sujidade de "Frenzy" (1972), de Hitchcock (aquele "lovely, lovely"); deslumbrei-me com a beleza barroca de "La Belle et la Bête" (1945), de Jean Cocteau ou de "Blade Runner" (1982), de Ridley Scott, e senti uma experiência quase mística ao ver a história do monge russo do século XV pintor de ícones "Andrei Roubliov" (1966), de Tarkovski.
A minha demanda continua.