quarta-feira, 24 de junho de 2009

Território de afectos



No filme “A Zona” o hospital é um território-limite, onde se pode morrer e nascer paredes meias. Sandro Aguilar filmou no Hospital de Santa Maria e no Hospital do Desterro, em Lisboa, fora dos horários das visitas, noite dentro, aproveitando alas inactivas, estacionamentos ou corredores de manutenção, “para não interferir.” Visitou Unidades de Cuidados Intensivos e reproduziu esses espaços “de forma muito sintética” no seu filme.
No cinema que faz, a narrativa não tende a seguir o tradicional princípio das causas e dos efeitos. O que Sandro Aguilar gosta de trabalhar são “esboços” de narrativas que lhe permitem fazer um tipo de cinema “mais próximo do poético ou das artes plásticas.” Apesar de reconhecer que esta obra, pela forma como está construída e filmada, tem uma dimensão “hipnótica”, nunca foi sua intenção criar uma espécie de “momento lounge” onde o espectador se elevasse na hipnose. Pelo contrário, ao espectador é proposto um exercício de pensamento e de construção, porque “tudo aquilo tem uma razão de ser.”
O que faz n'“A Zona”, explica, é seguir duas personagens, alternando, constantemente, as coordenadas do espaço e do tempo: “O passado contamina o futuro, o presente, propriamente, não existe, e é difícil identificar onde está o nível de realidade e outros níveis de outras realidades.” Admite que é uma espécie de puzzle que se coloca diante do espectador, mas ao invés de se formar uma imagem una e completa, o objectivo é ver este puzzle “na sua incompletude” e jogar com as várias informações que podem preencher as lacunas da narrativa. “Há uma razão para cada uma das coisas, mesmo que apareçam dispersas, e que permitem ao espectador acompanhar o filme e criar as suas próprias relações.”

Um filme muito físico

Sandro Aguilar descreve “A Zona” como um filme “muito físico.” Nalgumas cenas, a câmara aproxima-se violentamente dos corpos, porque “às vezes é preciso estarmos muito próximos para saber se esses corpos, que estão no limiar, estão vivos ou mortos, se estão a dormir ou acordados”, ou espia, impotente, o corpo de um recém-nascido numa incubadora. “A câmara gravita em torno do bebé e acompanha aquele momento. Tenta aproximar-se e não consegue. Há uma procura de um ângulo de onde se possa ver e entrar. Através dos olhos, da boca, há coisas que se comunicam, há túneis, há uma espécie de pontes para uma consciência e, às vezes, é só a câmara a esbarrar nessas impossibilidades.”
Além dos enquadramentos que denotam um grande rigor formal, os sons que povoam o filme também foram cuidadosamente ponderados. A sonoplastia é, aliás, uma das dimensões que mais gosta de explorar, sendo meticuloso na descrição dos ruídos no próprio argumento.
N'“A Zona” o som que se ouve “não é, de todo, realista: faz uma espécie de síntese das coisas que me interessam num espaço e, às vezes, retira tudo o resto.” O que o som faz neste filme é “retirar realismo à imagem” e instalá-lo nessa espécie de “limbo” onde Sandro Aguilar queria que ele estivesse.
A voz humana ouve-se raramente. O realizador rejeita “o diálogo funcional” e afirma que só usa diálogos em dois contextos: “Ou quando é completamente irrelevante o que se está a dizer ou quando é absolutamente essencial.”
Mas há uma razão para tantos silêncios: as personagens são parcas em palavras porque “o estado em que estão e o lugar que ocupam está para além das palavras. Há sempre uma razão para não falarem muito.”


Cinema-liberdade


“A Zona” é a primeira longa-metragem do realizador Sandro Aguilar, estreada na Competição Internacional do Festival IndieLisboa'08, já apresentada nos festivais de Locarno, Londres, Mar del Plata ou Turim, e que passou este ano, como um meteoro, por algumas salas de cinema nacionais.
Nas seis curtas-metragens que compõem a sua filmografia e nesta sua primeira longa, Sandro Aguilar tem procurado explorar “uma espécie de território afectivo, limite, entre sonho e realidade, entre vida e morte.”
Sandro Aguilar nasceu em 1974. A paixão pelo cinema não sabe de onde lhe vem, mas nunca se imaginou a fazer outra coisa que não fosse a realizar filmes. Aos sete anos de idade já ia sozinho ao cinema. Uma vez que era a mãe que lhe dava dinheiro para o bilhete, via a ida ao cinema “como uma experiência de presente” que lhe era dado e começou a ver de tudo.
Gosta de tantos realizadores e do cinema tão diferente que fazem que é difícil nomeá-los. Desenrasca a fórmula: “Tanto gosto de Ingmar Bergman como de John Carpenter...”
Fez o Curso de Cinema, na área de Montagem, na Escola Superior de Teatro e Cinema. Sandro Aguilar gosta desse momento “dado a minúcias” que é a montagem de um filme. Regra geral, atravessa todas as fases, desde a escrita do argumento à realização, mas o que lhe dá mais gozo é a montagem, porque é a fase das grandes decisões. “É o momento em que vou cristalizar todas as ideias, até à forma final. Tenho um fascínio particular porque é um dos momentos em que as decisões mais determinantes estão a ser tomadas.”
Em 1998 fundou a produtora O Som e a Fúria — a expressão surge na tragédia “Macbeth”, de William Shakespeare, e dá título à obra de 1929 do escritor norte-americano William Faulkner, cultor da técnica literária do fluxo de consciência — que procura acolher cinema de autor e independente.
Para Sandro Aguilar, o cinema português “é muito livre” e um dos mais interessantes do mundo. Se há preconceitos contra o cinema português é por desconhecimento, afiança. “Às vezes não se têm experiências positivas porque não se conhece, não se viu e não houve disponibilidade para ir ver.”
Mas a frustação que se pode sentir diante de um filme pouco convencional tem na sua base o “equívoco” de ver o cinema apenas como entretenimento. Constata que o cinema tem dificuldade em passar a barreira do entretenimento “de forma consistente e continuada” por estar ainda muito ligado à pesada indústria do entretenimento. “As pessoas percebem que um quadro possa ser feito para três pessoas apreciarem, mas acham mais difícil compreender que um filme possa ser feito para 200 ou 300 espectadores.”
Em 1998 realiza a sua primeira curta-metragem, “Estou Perto.” Seguiu-se, em 2000, “Sem Movimento” e, um ano depois, “Corpo e Meio.” “Remains” (2002), “A Serpente” (2005) e “Arquivo” (2007) são as curtas-metragens que se seguem na sua filmografia. Quatro dos seus filmes — “Estou Perto”, “Sem Movimento”, “Corpo e Meio” e “A Serpente” — foram premiados em reconhecidos certames de cinema em Portugal e no estrangeiro, como os festivais de Vila do Conde, Veneza ou Locarno. Uma maior disponibilidade na sua vida ditou o passo para a longa-metragem com o filme “A Zona”, de 2008.
O seu próximo filme será uma curta-metragem. Sobre este filme não fala: ainda está a tentar desvendá-lo para si próprio.


Filipa Lourenço





Entrevista publicada no Notícias Médicas nº3038, de 24.6.09

domingo, 21 de junho de 2009

Em câmara lenta

"Shotgun Stories", de Jeff Nichols, transporta-nos para um Arkansas soalheiro, onde a vida se arrasta monótona entre campos de algodão e viveiros de peixe. É uma história de irmãos. Son, Boy e Kid Hayes (nem nome de gente têm) foram abandonados pelo pai e cresceram negligenciados por uma mãe fria e rancorosa. Este pai endireitou a vida, deixou de beber e foi criar uma nova família. Este pai morreu. No dia do enterro, os meios irmãos trocam palavras azedas e começa aí um jogo de agressões e azedume entre os dois clãs.
Jeff Nichols fez um filme extraordinário pela sensibilidade com que conta a história. Somos embalados na suave rotina do trabalho e da vida naquele canto lento da América e, em crescendo, assistimos ao pulsar da raiva dentro daqueles homens, que explode de forma muito controlada no filme: Jeff Nichols mostra só o essencial e é eficiente nesse seu minimalismo.
Os actores impressionam: Son Hayes (grande Michael Shannon), tem um olhar magoado, a fala arrastada e anda curvado, como que embotado pelo calor. É um homem bom e resignado. Boy Hayes, corpulento, tímido e comodista, é encantador pelo golpe de asa que pressentimos nele. É outro homem bom e resignado.
Há aquele Shampoo, o rapaz enfaixado com ligaduras, não sabemos porquê, um pouco lerdo e de óculos de lentes grossas, que resulta numa personagem esteticamente inesquecível. As suas breves aparições são essenciais, porque são os seus comentários atirados de forma negligente que fazem avançar aquela história trágica de vingança, que acaba como tem de acabar: na paz dos campos de algodão.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Pós-apocalipse em tons sépia

Este "Terminator Salvation" tem pinta, mas é daqueles filmes que só vivem de uma poderosa artilharia de efeitos especiais, o que não deixa de nos deleitar. É de encher o olho, com cenas de acção alucinantes, onde a brutalidade e a eficiência das máquinas media forças com a resistência e a manha humana. Agradou-me a cor do filme, em tons sépia, e aqueles cenários pós-apocalípticos, que me fizeram voltar para dentro daquele livro cru, arrepiante e belo que é "The Road", do genial Cormac McCarthy.
Pelo meio, a magna reflexão do que faz de nós humanos e blábláblá, já a pingar para o lamecha, o que não deixa de nos deleitar.

sábado, 13 de junho de 2009

Zack and Miri make love...



Já não via um destes há uns tempos: um filme de piadas boçais, escatológicas e sexuadas, à americana. Este "Zack and Miri make a porno" não engana ninguém, mas estava à espera de melhor, tendo lá um Seth Rogen com o seu riso nasalado, que eu tinha gostado de ver no filme "Knocked Up." Até agora, só o vi fazer papéis de bandalho que se revela um tipo responsável e porreiro, mas reconheço-lhe talento.
A história é esta: dois amigos de longa data que partilham a casa estão afogados em dívidas. Já lhes cortaram a electricidade e a água e estão em risco de perder o tecto, num Inverno de estalo, que até dói ver. Decidem ganhar dinheiro a fazer um filme pornográfico e, no entretanto, descobrem que estão apaixonados um pelo outro. É isto, com uns quantos gags pelo meio e lá temos de lembrar as centenas de "fucks" que são atirados ao longo do filme. Acompanhamos os passos da produção do porno: a selecção do casting (o garanhão, a dominatrix, a loura avantajada, o gay e o homem da câmara, que protagonizará uma das cenas mais trágicas de que há memória), a escolha aturada do título do filme, que é das sequências mais divertidas (saíram-se com um "Star Whores", que deu para o torto), o argumento, que, bom, não falemos disso e as artísticas filmagens.
O filme porno fica incompleto e não sabemos se vinga. O outro "filme", a descoberta do amor por Zack e Miri, acaba com muitos sorrisos, lágrimas, suor e aquilo que estão a pensar.


Nota etnográfica: o poster do lado esquerdo foi banido dos EUA. Substituíram-no pelo da direita.


quarta-feira, 10 de junho de 2009

Deixa-me entrar na tua pele



A neve, o frio, a pré-adolescência e o sangue misturam-se primorosamente neste filme belo e delicado do sueco Tomas Alfredson, "Let the right one in" ("Deixa-me entrar"), uma iniciação ao amor e à dor que mete vampiros numa Suécia invernal dos anos 80, abafada em camisolas de lã. É um filme perturbante, não tanto pelas cenas macabras que não podiam faltar ao género, mas sobretudo pelas tensões que atravessam as crianças que pululam a história. Ali não há inocentes: estão todos manchados de sangue, de crueldades ou de vingança.
Oskar, o rapaz louro que me faz lembrar o principezinho de Saint-Exupéry a cuidar da sua rosa, maltratado pelos bullies da escola, e Eli, a vampira presa num corpo de menina, são imensamente expressivos. Eli é a mais inquietante, por ser uma criança sem idade, uma mulher madura presa num corpo pré-adolescente e que seduz inocentemente (?) um miúdo de 12 anos. E tinha uns grandes olhos verdes azulados, calmos e silenciosos. A grande sequência, para mim, é aquela espécie de pedido de amor e de compreensão que a vampira ensanguentada faz ao miúdo: "Põe-te na minha pele." Talvez que o amor comece por aí.
O filme está repleto de tensões sexuais, que são, aliás, apanágio de todas as histórias de vampiros que se prezem. Há ali relações dúbias, como a que liga a vampira ao seu suposto pai. Na novela que deu origem ao filme, do sueco John Ajvide Lindqvist, este "pai" era um pedófilo, mas no filme isso não é claro. Pode até ser amor e, no final, tememos que Oskar se transforme, também por amor, nesse angariador de sangue abnegado. Há também a homossexualidade do pai de Oskar, que nem ao filho escapa.
Gostei da beleza fria e silenciosa deste filme e gostei do sangue que salpicava meticulosamente o rosto branco de neve da vampira Eli.





















domingo, 7 de junho de 2009

33 em 1

"Chacun son cinéma ou Ce petit coup au coeur quand la lumière s'éteint et que le film commence" são 33 declarações de amor ao cinema, de três minutos cada, encomendadas para celebrar os 60 anos do Festival de Cannes.
Está lá um depurado e bem-humorado Manoel de Oliveira, perturbantes Cronenberg e Lars von Trier, comoventes Iñárritu, Kiarostami e Lelouch, um absurdo David Lynch, um púbere Gus Van Sant, um festivo Walter Salles, um sensual Wong Kar Way, uma mordaz Jane Campion, um surpreendente Polanski ou um interventivo Wim Wenders.
O que resulta é um mosaio criativo, caótico e heterogéneo que nos faz dar a volta ao mundo e nos enreda as ideias, porque é difícil absorver tudo aquilo de enfiada: queríamos ficar a matutar sobre as histórias que se esboçavam num filme, mas hop, era preciso dar espaço para ajeitarmos mais três novos minutos de cinema.
Gostei do nosso Oliveira, que encenou um "encontro único" entre o comunista Krutchev e o católico Papa João XXIII, a última aparição no cinema de João Bénard da Costa (e que bela aparição, tão viva e alegre, embora se sinta o peso da doença); gostei de "Anna", a cega que se comovia ao ouvir "Le Mépris", de Jean-Luc Godard; gostei da marotice de Polanski, do humor macabro de Lars von Trier ou da frenética música cantada e tocada por Castanha e Caju numa paródia ao circo que é Cannes, que o brasileiro Walter Salles filmou; adorei Gus Van Sant, como sempre deslumbrante e minimalista; Wim Wenders fez um filme inquietante, ao captar uma sessão de "videocine" no Congo, onde homens e crianças (impressionantes e comoventes) viam absortos um filme de guerra em tempos de paz rara.
Houve de tudo neste filme colectivo: egotismos e nostalgias, lágrimas, humor, estranheza, desconforto, mordacidade, amor e reconhecimento. Foi uma experiência caótica e emocionante que gostei de viver.