terça-feira, 24 de março de 2009

Caos Calmo: um luto ou o amor de um pai pela filha


NOTÍCIAS MÉDICAS desafiou o Dr. António Coimbra de Matos, psiquiatra e psicanalista, para analisar o filme “Caos Calmo”, realizado por Antonello Grimaldi, baseado no romance homónimo do escritor italiano Sandro Veronesi, publicado em Portugal pelas Edições Asa. É a história de um luto e da sua superação, mas é principalmente uma história de amor paternal. “O pai está mais preocupado com a filha do que com ele e isso ajuda-o a fazer o luto [pela mulher]. Isso mostra a saúde mental deste homem e o seu afecto”







Pietro Paladini fica viúvo inesperadamente, no mesmo dia em que salva uma mulher desconhecida de morrer afogada no mar. Pietro tem uma filha, Claudia. Quando ela regressa à escola, o pai decide esperá-la no jardim em frente. E continuará a fazê-lo, durante meses a fio.
Para o Dr. António Coimbra de Matos, a faceta mais interessante e rica do filme “Caos Calmo” é, justamente, a preocupação deste pai pelo bem-estar da sua filha depois da trágica morte da mãe. “Está mais preocupado com a filha do que com ele e isso ajuda-o a fazer o próprio processo de luto. Isso mostra a saúde mental deste homem e o seu afecto. Mostra que não é um homem egoísta e, na medida em que está centrado noutra pessoa, o luto também se vai fazendo mais facilmente. Não está a pensar: desgraçado de mim que perdi a mulher, mas antes: o que se está a passar com a minha filha?”
Há diferenças na forma como adultos e crianças vivem o luto: “Os adultos fazem um luto mais vivido, mais pesado, mas que dura menos tempo. As crianças fazem um luto mais ligeiro, mas que dura mais tempo. As crianças vão fazendo o luto, mas não estão sempre a pensar naquilo. Elas têm dificuldade em viver os afectos negativos e, portanto, vivem-nos em intervalos curtos.”
Afirma que um dos erros que se cometem na abordagem do luto nas crianças é considerar-se que o melhor é não pensarem no assunto e resguardá-las do confronto com a morte. Pelo contrário, é preciso deixar a criança viver o luto. “A criança tem que pensar, tem de sentir a tristeza e expressar-se para elaborar o luto, senão, esse processo é bloqueado.”
“Num luto normal não se faz psicoterapia”

Os sentimentos negativos que se vivem durante um luto são tão normais como um corpo febril, reagindo à infecção. Até determinados limites, é preciso deixar a febre correr, porque ela faz parte da cura. O luto não é uma doença que precise de ser tratada, insiste. “Num luto normal não se faz psicoterapia. É um processo normal.”
Aliás, há no filme uma cena em que o marido enlutado participa numa psicoterapia de grupo, que se revelará desastrosa. O Dr. António Coimbra de Matos faz suas as conclusões de Pietro Paladini naquela ocasião: “A psicoterapia de grupo era uma idiotice e ele não estava lá a fazer nada.”
A acontecer, a intervenção do médico numa situação de luto não patológico deverá ser muito ligeira, sob o risco de se “fabricar uma doença que não existe.”
O psiquiatra e psicanalista relatou o caso de um casal que o procurou por causa do filho de seis anos que acabava de perder um primo, pouco mais velho do que ele, num acidente de automóvel. O Dr. António Coimbra de Matos conversou primeiro a sós com o menino. “Se eu tivesse ouvido primeiro os pais, provavelmente, tinha feito um diagnóstico de depressão, de psicose ou coisa parecida, uma vez que me contavam uma história alarmante...”
Sossegou os pais: o filho não precisava de nenhum tratamento, porque o que estava a sentir era um traumatismo normal, dadas as circunstâncias. “Ele tinha de pensar aquelas coisas, para ficarem bem enterradas. Quando há uma vivência traumática, temos de a elaborar para que não fiquem coisas por conhecer, que se tornam, assim, quistos de malignidade.”

O luto patológico

No entanto, há lutos doentios. No filme, uma das pessoas com quem Pietro Paladini se cruza confessa-lhe que quando a sua mulher morreu ficou subitamente com a obsessão das limpezas. Este seria um luto patológico, de tipo obsessivo.
Na sua prática clínica, o psiquiatra e psicanalista já lidou com um luto paranóide: foi o caso de uma viúva que alimentava a convicção de que o marido não cumpria a medicação prescrita para o coração por não gostar dela e, por isso, morreu.
Na leitura do Dr. António Coimbra de Matos, Pietro Paladini atravessa um luto perfeitamente normal. O título do filme, “Caos Calmo”, sugere isso mesmo: “Não é um caos agitado, desorganizado, patológico.”
O acto de esperar no jardim em frente ao colégio da filha serve de metáfora à paragem interior que o protagonista vive durante o seu processo de luto. “É uma paragem mental, que também faz parte do trabalho do luto. É um indivíduo que não investe da mesma forma na realidade por estar preso à realidade interna.”
O médico reconhece que sentiu o mesmo quando viveu o luto pelo seu pai, pouco depois de ter terminado o curso. Nessa época, recorda, “a realidade passou por mim num certo nevoeiro. Uma pessoa não regista, nem vive, com a mesma intensidade.”
Defende que o princípio do fim do luto de Pietro é o momento do seu “sonho erótico” com a mulher que salvou na praia. “O fim do luto é precisamente esse: é investir noutro objecto.”





Filipa Lourenço


Entrevista publicada no semanário NOTÍCIAS MÉDICAS nº3017, de 21 de Janeiro de 2009

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