terça-feira, 12 de maio de 2009

"A Zona" é um lugar estranho

Com mente aberta. Foi assim que me recostei no banco guinchante do Cinema Londres para ver "A Zona", de Sandro Aguilar. Expectativas, havia algumas. Tinha lido umas linhas sobre o filme, onde se dizia que era preciso olhar para aquele ecrã como quem vai a uma galeria de arte, porque cada plano era "emoldurável", que é uma expressão bonita.
Com mente aberta e algumas expectativas contemplei este objecto, ou antes, primeiro ouvi. O filme é todo ruídos: carros, comboios, conversas em corredores de hospital, choro de bebés, suspiros e muitos silêncios. E tudo coberto por uma névoa de tons azuis (que eu já tinha visto no poderoso filme que é "Alice"), caras desfocadas, zooms incríveis que captam cada poro da pele e cada pêlo da barba de um homem ou um olho pestanudo e esbugalhado que parecia saído do filme "Un Chien Andalou" de Buñuel e tem graça porque nesta "Zona" há muitos cães, doentes e um sem olho.
Contemplei estes quadros pintados pelo realizador e pensava se não estaria perante o embuste do artista que quer fazer bonito e foi sempre assim, entre desconfiada e deslumbrada, que olhava para cenas como aquela em que se vê um prematuro a chorar, de mansinho, na sua incubadora. Pensei logo que aquilo era batota, porque é fácil ser "artista" quando se tem à frente um prematuro frágil e desdentado, a mover os dedinhos e a boquinha. É demasiado fácil. E, no entanto, mexe connosco. E que dizer daquela cena em que umas mãos enluvadas lavam o corpo de um homem em coma? É só isto, mas é uma cena hipnótica pelos sons e pelos gestos daquelas mãos eficientes. E o filme joga-se assim, em planos lentos, cheios de ruídos, banais, mas que me puseram, num par de cenas, num alvoroço de pele de galinha e isso é alguma coisa.
Ali há histórias, mas são-nos dadas aos pedacinhos, toma lá mais uma e amanha-te, e nós vamos tentando dar um sentido àquelas personagens que só olham no vazio, fumam cigarros, arrastam-se por casas, bebem cafés, choram, andam de mota e morrem e que mal se ouvem falar. Mas há histórias e é assim que eu as conto para mim: há este Rui de olhos tristes que tem o pai em coma, que deambula pela casa da sua infância, que experimenta fatos velhos, olha para fotografias, abandona um cão e lembra-se daquele dia em que o seu pai abandonou a sua mãe e fugiu com ele para um lado qualquer. Há esta Leonor, que perde o marido num desastre e tem um filho prematuramente. O Rui e a Leonor, que se conhecem de uma tresloucada festa de Natal do escritório, reencontram-se no hospital, já pisados pela vida, e vão juntos numa mota pela estrada fora até morrerem os dois num desastre. Há uma história mais enigmática pelo meio. O homem que vive numa barraca com a mulher grávida, rodeado de cães e que uma noite, deambulando na floresta, cai redondo no chão, com sangue a escorrer da boca, talvez envenenado pela mulher.
E nas cenas finais pregam-nos à frente uma moldura com umas árvores abanadas pelo vento e só me vem à cabeça aquela cena do "Family Guy" em que o Peter Griffin, de câmara de vídeo em punho, se extasia com a visão de um saco de plástico a esvoaçar ao vento (seria "Beleza Americana"?) e nisto vemos Deus na sua nuvem a arengar: "É apenas um saco do lixo a voar!" E no entanto...
"A Zona" é um lugar estranho, mas gostei de lá estar.

5 comentários:

  1. Obrigado pela visita ao meu blog. Foi precisamente na palestra da Nancy Andreasen que ouvi aquela citação do Konrad Lorenz que tu depois comentaste. Sabias-me lá na palestra? Estou curioso.

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  2. Descobri o teu blog através do "Repórter à Solta", do Paulo Moura. Quando vi o título do teu post sobre o córtex de associação, quando olhei para a data e quando li a citação do Konrad Lorenz, pensei: "Só pode ter estado na palestra da Nancy Andreasen." E que belíssima palestra e que mulher interessante. Gostei da foto dos gansos...liga bem com o Lorenz.

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  3. Perspicácia! É o próprio Konrad entre os gansos. Não adoraste a t-shirt da Nancy? Lembras-te? eheh

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  4. Pareceu-me uma cabeça de Janus em corpo de mulher. Ou seria um teste de Rorschach?

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  5. sim, uma espécie de Janus. Fez-me pensar, por exemplo, em como uma mulher tem de mostrar várias caras, especialmente se se mover em meios de homens (como era o caso, tal como ela ilustrou).

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