sábado, 10 de outubro de 2009

Cinema-amor


“O Sangue”, de Pedro Costa, faz 20 anos. João Bénard da Costa aparece nos extras do DVD a ler no meio de um bosque um manuscrito onde discorre sobre o filme. Ninguém falava com tanto amor sobre cinema como o Bénard. É um deleite vê-lo passar as folhas do seu bloco A4 e ouvi-lo falar, na sua voz arranhada, sobre o punhado de sequências que o fascinam neste filme duro e terno, a preto e branco, cheio de frases secas, de planos feitos a régua e esquadro, acompanhado de uma banda sonora tão incongruente e tão certa.
E Bénard a falar da clamorosa bofetada que abre o filme, do belíssimo plano com as árvores tortas, da sequência do trio que passa a duo amoroso, daquela exortação “Pede-me coisas” (que é um nó na garganta, de tão bela), dos dedos esculpidos do menino que dorme e que se agita num pesadelo e que lhe faz lembrar uma escultura que viu em Itália.
No ano passado, Pedro Costa foi convidado para programar a festa dos 50 anos da Cinemateca. Calhou justamente no dia dos meus anos e foi numa sala escura que os festejei, alegremente. Agora percebo por que razão Pedro Costa escolheu passar o filme “So dark the night” (1946), de Joseph H. Lewis, um film noir que conta a história de um detective francês de meia-idade que se recolhe no campo para repousar e se apaixona. No dia do noivado, a sua jovem noiva desaparece, para aparecer morta, tal como o seu antigo namorado. E o detective chegará à conclusão que foi ele, inconscientemente, o autor dos dois crimes: l’ amour fou. Pedro Costa justificou a escolha deste filme um pouco incógnito pela geometria de cada plano e, de facto, tudo parecia estar rigorosamente no sítio certo e era esse artifício tão evidente e tão regrado que lhe dava toda a força e beleza.
Sempre gostei de filmes aprimorados e com excessos de zelo e “O Sangue” emociona por ser uma luminosa declaração de amor ao grande cinema das frases contundentes, dos gestos dramáticos e dos planos construídos com cuidados de artesão.

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